Sábado fiz flores de porcelana fria. O dia e a noite moldando pétalas, absolutamente indiferente. Parei às três horas da madrugada com um novo jardim de inverno. Dormi bem depois de 48 horas no ar.
E enquanto fazia deste Domingo uma Segunda - afinal há coisas para se esquecer mas muitas pra se lembrar - chegou a notícia da morte de Marly de Oliveira, poeta, suave pantera.
Tudo fez mais sentido, embora o prumo da Segunda tenha sido imediatamente perdido. Pessoas que conseguem ler a pantera são raras, impossível não perceber um fio condutor nisso tudo. Deixei o tempo pra lá e fui reler alguns de seus poemas. E descobrir qual era o recado de Marly pra mim, o que era importante saber. Ou lembrar:
E nem será paixão, será o gosto
do sentir excessivo e prolongado,
o gosto da emoção, que a mim me livra
de um tédio natural e consumado.
Revejo a minha vida a cada passo:
quando a vivi realmente como minha?
Nunca soube o que quis; no entanto, sempre
era-me pouco tudo o que podia,
era-me pouco tudo o que alcançava,
para a sede na certa muito grande,
uma sede na certa inconfessada;
sede visível mais do que diamante,
e que me leva a quê? transfigurada,
e assim amar, porque é fatal que se ame.
(marly de oliveira)
É fatal que se ame. Quanto a isso, não há nada a fazer. Ainda mais quando nada é o que parece ser porque é possível perceber além das aparências. E embora Dona Esperança tenha se retirado pela janela (sim, ela esteve aqui e me disse que existia!) eu tomarei a jóia, colocarei na mais linda e encantada das caixinhas e abrirei as outras portas. Sem tentar entender a razão ou a falta de sentido. E sem esconder o que sinto.
Creio que teria conhecido Marly se não tivesse me desencontrado de Mônica Moreira, sua filha, na minha última estada no Rio de Janeiro. Amei o poema "Suave Pantera" e quando soube que Marly o escreveu depois de uma visita ao Zoológico com Clarice Lispector, tracei imediatamente relações com um trecho de Água Viva (que pode ser lido aqui).
Queria ter ouvido de viva-voz o relato. Mônica me contou que sua mãe tinha acabado de voltar de uma pós em Roma e foi passear com Clarice e os filhos. Ela observava a pantera negra, brilhante como uma jóia, quando uma criança jogou uma pedra e a pantera mostrou sua fúria, fera que é. Marly foi para casa pensando na suavidade incial do animal, sua noção do presente sem consciência do passado e sem projetos futuros, presa atrás das grades. Marly percebeu que a pantera só queria ser livre. E escreveu "Suave Pantera" (1962), que ganhou o prêmio Olavo Bilac, concedido pela Academia Brasileira de Letras no ano seguinte. O poema está aqui no blog, completo. Posto o trecho XIV, que agora me salta aos olhos com patas veludo:
XIV
A liberdade da pantera
está justamente nisto:
que nem ela se governa,
e o que sucede é imprevisto.
Essa a vantagem da fera:
uma força que ela abriga,
inconsciente, dentro dela
- sob a aparência tranqüila -
e de repente se revela,
mas uma espécie de fúria,
que atinge inclusive a ela,
mas numa espécie de luta,
que é o modo que tem a cólera
de mostrar-se numa fera,
e que é a sua única forma
de ser pura, além de bela.
(marly de oliveira)
Então, não há escapatória. Há que se ser exatamente o que se é, sob a pena de perder a vida em vida. Sem muito arremate, sem racionalizar pensando no que é adequado ou deixa de ser. Sem viagens futuras, sem viagens passadas. Essa é a grade. Essa é a jaula. Essa é a verdadeira morte. E a gente sempre lembra disso quando alguém da turma dos intensos se manda para o infinito. Grata pelo presente, Marly.
Quando um dia estiver morta
e sobre mim caírem os adjetivos mais ternos,
não vou mover um dedo
de dentro do meu silêncio:
vou desdenhar do eterno
o que sempre chegou tarde,
demais, quando já nem era preciso
(marly de oliveira)
2 comentários:
Que lindo Monica.
Espero que consiga sair da tua jaula com a mesma intensidade com que escreveu este capítulo.
Realmente, essa postagem é um sumo de percepção poética: uma bela tradução da sua bela autora.
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