quinta-feira, julho 29, 2004

Água Viva (um trecho)

Tenho que interromper para dizer que "X" é o que existe dentro de mim. "X" - eu me banho neste isto. É impronunciável. Tudo que não sei está em "X". A morte? a morte é "X". Mas muita vida também pois a vida é impronunciável. "X" que estremece em mim e tenho medo de seu diapasão: vibra como uma corda de violoncelo, corda tensa que quando é tangida emite eletricidade pura, sem melodia. O instante é impronunciável. Uma sensibilidade outra é que se apercebe de "X".

Espero que você viva "X" para experimentar a espécie de sono criador que se espreguiça através das veias. "X" não é bom nem ruim. Sempre independe. Mas só acontece para o que tem corpo. Embora imaterial, precisa do corpo nosso e do corpo da coisa. Há objetos que são esse mistério total do "X". Como o que vibra mudo. Os instantes são estilhaços de "x" espocando sem parar. O excesso de mim chega a doer.

E quando estou excessiva tenho que dar de mim. Como o leite que se não fluir rebenta o seio. Livro-me da pressão e volto ao tamanho natural. A elasticidade exata. Elasticidade de uma pantera macia.

Uma pantera negra enjaulada. Uma vez olhei bem nos olhos de uma pantera e ela me olhou bem nos meus olhos. Transmutamo-nos. Aquele medo. Saí de lá toda ofuscada por dentro, o "x" inquieto. Tudo se passara atrás do pensamento. Estou com saudade daquele terror que me deu trocar de olhar com a pantera negra. Sei fazer terror.

"X" é o sopro do it? é a sua irradiante respiração fria? "X" é palavra? A palavra apenas se refere a uma coisa e esta é sempre inalcançável por mim. Cada um de nós é um símbolo que lida com símbolos - tudo ponto de apenas referência ao real. Procuramos desesperadamente encontrar uma identidade própria e a identidade do real. E se nos entendemos através do símbolo é porque temos os mesmos símbolos e a mesma experiência da coisa em si: mas a realidade não tem sinônimos.


Clarice Lispector
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Foi curioso descobrir que a poeta Marly de Oliveira escreveu "A Suave Pantera" depois de um passeio ao zoológico com Clarice Lispector e seus filhos. Marly observava a pantera negra, brilhante como uma jóia. De repente uma criança atira uma pedra e a pantera mostra a fera em fúria. Conta a filha de Marly, Monica Moreira, que sua mãe foi para casa pensando na suavidade inicial da pantera, sua noção do presente sem consciência do passado e sem projetos futuros, presa atrás das grades. Marly percebeu que a pantera só queria ser livre. Grata à Monica Moreira por me brindar com o testemunho de Marly.

2 comentários:

Ivan disse...

Querida e linda Zoe:

só você mesmo pra me fazer ler a Clarice: ela me dá muito medo, mas já consegui engolir a barata de "A paixão segundo GH" e ser atropelado por "A hora da estrela". Qualquer dia eu me embrenho mais perto desse coração selvagem, enquanto isso a dose que você administrou foi perfeita pra me manter ligado. bigato! e um beijo.

Maria Regina de Souza disse...

Adorei ler um pouco de Clarice no seu Blog, ou ler um pouco do seu Blog em Clarice. Bem Ela nos deixa assim... Interrogando tudo em nossa volta! Mas acho que assim é melhor viver!
Um abraço