quinta-feira, junho 28, 2007

ANIVERSÁRIO DO BLOG





Eu vou te pegar

isso é um fato,
o resto é futuro.



ana rüsche

terça-feira, junho 19, 2007

Navio de Espelhos





O navio de espelhos
não navega cavalga
Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível
Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos
Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele
Os armadores não amam
a sua rota clara
(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)
Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga
O seu porão traz nada
nada leva à partida
Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta
(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)
Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto
A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto
Quando um se revolta
há dez mil insurrectos
(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)
E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo
Toda a nave cavalga
( Como no espaço os astros)
Do princípio do mundo
até ao fim do mundo.


Mário Cesariny
p.s. o poema no Youtube

sexta-feira, junho 08, 2007




A especialidade me é impossível.
Valho um sorriso. Você não é nem
poeta, nem filósofo, nem geômetra -
nem outra coisa. Você não aprofunda
nada. Com que direito você fala daquilo
a que não se consagrou com
exclusividade?
Eu sou como o olho que vê o que vê.
Seu menor movimento muda o muro em nuvem
a nuvem em relógio; o relógio
em letras que falam. Talvez esteja aí
a minha especialidade.


Paul Valéry

domingo, junho 03, 2007

Últimas impressões

Sexta feira foi um dia nervoso. Coisas que costumo deixar passar mas que por um maldito pingo d'água, resolvi transbordar. Foi bom esmurrar o céu, vociferar amores, destampar Marte e deitar sua calda quente. Dói, mas de uma vez só. A esperança pode ser um disfarce para o medo de uma pretensa verdade. E a coragem de perder a esperança, um ganho para que a gente se sinta mais viva. Mesmo que seja a perda de um ideal de felicidade. É vero que nada é o que parece ser, como dizia Patricia Highsmith. Mas isso agora não importa. A real é que dei piti e chorei pra caramba. Essa era minha única verdade e a obedeci.

Sábado fiz flores de porcelana fria. O dia e a noite moldando pétalas, absolutamente indiferente. Parei às três horas da madrugada com um novo jardim de inverno. Dormi bem depois de 48 horas no ar.

E enquanto fazia deste Domingo uma Segunda - afinal há coisas para se esquecer mas muitas pra se lembrar - chegou a notícia da morte de Marly de Oliveira, poeta, suave pantera.

Tudo fez mais sentido, embora o prumo da Segunda tenha sido imediatamente perdido. Pessoas que conseguem ler a pantera são raras, impossível não perceber um fio condutor nisso tudo. Deixei o tempo pra lá e fui reler alguns de seus poemas. E descobrir qual era o recado de Marly pra mim, o que era importante saber. Ou lembrar:


E nem será paixão, será o gosto
do sentir excessivo e prolongado,
o gosto da emoção, que a mim me livra
de um tédio natural e consumado.
Revejo a minha vida a cada passo:
quando a vivi realmente como minha?
Nunca soube o que quis; no entanto, sempre
era-me pouco tudo o que podia,
era-me pouco tudo o que alcançava,
para a sede na certa muito grande,
uma sede na certa inconfessada;
sede visível mais do que diamante,

e que me leva a quê? transfigurada,
e assim amar, porque é fatal que se ame.

(marly de oliveira)


É fatal que se ame. Quanto a isso, não há nada a fazer. Ainda mais quando nada é o que parece ser porque é possível perceber além das aparências. E embora Dona Esperança tenha se retirado pela janela (sim, ela esteve aqui e me disse que existia!) eu tomarei a jóia, colocarei na mais linda e encantada das caixinhas e abrirei as outras portas. Sem tentar entender a razão ou a falta de sentido. E sem esconder o que sinto.

Creio que teria conhecido Marly se não tivesse me desencontrado de Mônica Moreira, sua filha, na minha última estada no Rio de Janeiro. Amei o poema "Suave Pantera" e quando soube que Marly o escreveu depois de uma visita ao Zoológico com Clarice Lispector, tracei imediatamente relações com um trecho de Água Viva (que pode ser lido aqui).

Queria ter ouvido de viva-voz o relato. Mônica me contou que sua mãe tinha acabado de voltar de uma pós em Roma e foi passear com Clarice e os filhos. Ela observava a pantera negra, brilhante como uma jóia, quando uma criança jogou uma pedra e a pantera mostrou sua fúria, fera que é. Marly foi para casa pensando na suavidade incial do animal, sua noção do presente sem consciência do passado e sem projetos futuros, presa atrás das grades. Marly percebeu que a pantera só queria ser livre. E escreveu "Suave Pantera" (1962), que ganhou o prêmio Olavo Bilac, concedido pela Academia Brasileira de Letras no ano seguinte. O poema está aqui no blog, completo. Posto o trecho XIV, que agora me salta aos olhos com patas veludo:



XIV


A liberdade da pantera

está justamente nisto:

que nem ela se governa,

e o que sucede é imprevisto.

Essa a vantagem da fera:

uma força que ela abriga,

inconsciente, dentro dela

- sob a aparência tranqüila -

e de repente se revela,

mas uma espécie de fúria,

que atinge inclusive a ela,

mas numa espécie de luta,

que é o modo que tem a cólera

de mostrar-se numa fera,

e que é a sua única forma

de ser pura, além de bela.

(marly de oliveira)


Então, não há escapatória. Há que se ser exatamente o que se é, sob a pena de perder a vida em vida. Sem muito arremate, sem racionalizar pensando no que é adequado ou deixa de ser. Sem viagens futuras, sem viagens passadas. Essa é a grade. Essa é a jaula. Essa é a verdadeira morte. E a gente sempre lembra disso quando alguém da turma dos intensos se manda para o infinito. Grata pelo presente, Marly.


Quando um dia estiver morta

e sobre mim caírem os adjetivos mais ternos,

não vou mover um dedo

de dentro do meu silêncio:

vou desdenhar do eterno

o que sempre chegou tarde,

demais, quando já nem era preciso

(marly de oliveira)

MARLY DE OLIVEIRA (1938 - 2007)

uma pantera quando exala
não vai para o céu ou o inferno
troca a pele pelo silêncio
que acorda entre o dia e a noite
e dorme no instante que separa
a noite do dia

ali paira:

feito um veneno doce
uma palavra suspensa
um hálito quente
como era de costume
fora da jaula

a morte nunca desconhecerá a morte



Zoe de Camaris

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MARLY DE OLIVEIRA (1935 - 2007)


Morreu no Rio de Janeiro, aos 69 anos, a poeta Marly de Oliveira, viúva do imortal João Cabral de Melo. Marly estava internada na Clínica São Vicente, na Zona Sul do Rio há dois meses, e faleceu na noite da última sexta-feira de falência múltipla dos órgãos. Ela será sepultada no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, às 17h, deste sábado.

Marly já havia sido internada em fevereiro, no Hospital Samaritano. De lá, fora transferida para a clínica São Vicente, onde chegou a fazer um transplante de fígado, mas não resistiu. Autora de 15 livros, a poeta venceu o prêmio Jabuti, em 1998, com "O Mar de Permeio". Marly de Oliveira deixa duas filhas: Mônica e Patrícia Moreira.

(Globo Notícias)

Nascida em Cachoeiro do Itapemirim- ES, fez seus primeiros estudos em Campos dos Goytacazes - RJ. Poeta e professora de língua e literatura italianas e de literatura hispano-americana. Publicou, entre outros, os livros: Cerco da Primavera (1957), Explicação de Narciso (1960), A Suave Pantera(1962), A Vida Natural e O Sangue na Veia (1967), Contato e Invocação de Orpheu (1975), O Mar de Permeio(1998) e Uma vez, sempre (2000).

Veja uma mostra de seus poemas no
Jornal de Poesia