terça-feira, agosto 28, 2007



Poema

Amo-te por cada pestana, cabelo, debato-me contigo em corredores
branquíssimos de onde nascem fontes de luz,
luto contigo em cada nome, arranco-te com delicadeza de cicatriz,
vou colocando em teus cabelos cinzas de relâmpago
e espigas que dormiam à chuva.
Não quero que tenhas uma forma, antes que sejas
precisamente o que vem por detrás da tua mão,
porque a água, considera a água, e os leões
quando se dissolvem no açúcar da fábula,
e os gestos, essa arquitectura do nada,
acendendo suas luzes a metade do seu encontro.
Todas as manhãs são o quadro onde te invento, desenho,
e te apago, assim não és, nem
com esse cabelo caído, esse sorriso.
Procuro-te na tua totalidade, no copo onde o vinho
é também lua e espelho,
procuro esse limite que faz vibrar um homem
numa galeria de museu.
E quero-te, e faz tempo e frio.


Julio Cortázar
versão de Manuel A. Domingos
e descaradamente roubado do blog do Ivan

terça-feira, agosto 21, 2007



O QUE ELA ENGOLE


O que ela guarda na mão esquerda?
O que ela pede enquanto levita?
De quem se lembra em sórdido fracasso?

Por que não dorme com o antebraço
em vez do travesseiro? Que destinos
giza intrépida com olhos de víbora?

Que demônio se esconde no seu berço?
A noite pode ainda assim retê-la?
O que ela engole e prende dentro do

corpo, amarrando a saia às coxas?
O que lhe rompe o peito às horas
mortas e faz abrir-se o vento, selar-se

o rito, morrer este que escreve? Às vezes
acha tudo ultrapassado, e quer fechar
os braços, o corpo todo. Que nenhum

farsante venha tirar-lhe do vermelho...
Agora é ater-se à dança, conquanto
tenham-se fechado as portas, o teto,

as paredes, e estejamos presos na vitrine.
Não quero desistir de novo e morrer
pela boca como peixe. Pede-se tão pouco

aos poetas: que não mintam, e da sede
que os trucida edifiquem novas cartas
e esferas de granito. Um astronauta

contou-me num poema que os dias na nave
eram graves. Mas sem isso não há como seguir
no espaço o rumo dos sonhos, que desfibram

já os toca o homem. O nosso sangue
é turvo, e o ar que respiramos sem divisas.
She swallows the poisoned apple.

Eu — engulo a rosa do destino.



Sérgio Nazar David

sexta-feira, agosto 03, 2007




Senhor, deitou-se a meu lado
E cheirava a maçã como no dia
Em que o primeiro pecado
Furava a terra e nascia.

Era preciso lutar,
Cuspir-lhe o corpo, que vi
E era como um pomar!...

Senhor, eu então comi.



Miguel Torga