quinta-feira, julho 03, 2008




A Maçã - vol.2.


Se e quando algum deus a desenhou, a caneta estava falhando ou a impressora era antiga; caso no princípio tenha mesmo sido o Verbo, algumas palavras devem ter-se prendido na ponta da Língua. Qualquer que fosse a cosmogênese, o fato é que a garota nasceu pontilhada.

Nos primórdios, teve que lidar com seu eu arquipélago com a disciplina da marinha grega, tantas as lacunas do seu domínio e tamanho o medo de invasores: muitos calcanhares não definem um herói. Foi quando aprendeu a ler e a escrever, e passou a entender as garatujas que vinham nas garrafas enviadas pelos seus eus sobreviventes dos naufrágios, quanta solidão em cada um.

Talvez tenha vindo daí o gosto pelas garrafas, mas isso já é outra história: o importante é que as mensagens uniram pontos e ela começou a se tracejar primeiro em código morse, depois enfileirando hexagramas do I Ching. Muitas e pequenas mortes: em um dia era só sorriso, em outro não existia até o mês seguinte - ou sei lá quando, crescimento orgânico, vai saber, não tem padrões previsíveis.

Mas ela ainda tentava prever quando ele apareceu, contando os passos para não cair nos descontínuos abismos de sua pele. Teve medo quando ele achou que o suposto do seu traçado era uma insinuação ontológica, e até tentou guilhotiná-lo com o movimento de suas placas subcutâneas, mas ele também era poroso e os dentes dela só morderam-se a si mesmos. Ela não tinha mais nada a que se apegar, fora ao que se enlaçava voluntariamente às esquinas dos seus traços sobrepostos.

Agarrou-se a isso, então. Foi quando o labirinto de desenho brusco virou curvas concêntricas, uma só caverna de vazio reunido, galáxia pulsando no ritmo descontínuo dos músculos dele e do mundo, e suas lacunas viraram mil bocas de um vulcão que respirava o tempo e era erodido por todos os dias da vida.

E então, naquele segundo antes da vontade do cigarro, enquanto o que sobrara dela concluía que dissolver-se era mais divertido do que a ilusão do reunir-se, talvez tenha sido o Verbo a voz que cantava em coro contínuo que a volatilidade era sua ressurreição.


ERIKA HIRS