domingo, outubro 31, 2004


Salome / foto de Mario Piazza


Antecedentes de Salomé: a Salomé de Oscar Wilde


A primeira aparição de Salomé no mundo literário foi no Evangelho de Mateus. Mateus conta que Herodes pediu que a filha de Herodias dançasse para ele no seu aniversário. Ao agradar o rei, ele ofereceu à garota qualquer recompensa que desejasse. Herodias incitou sua filha a pedir a cabeça de João Batista numa bandeja. A cabeça foi trazida num prato e dada à jovem, e ela a levou a sua mãe. Mateus nem preocupa-se em nos dar o nome de Salomé.

A figura de Salomé e seus sete véus fascina artistas e escritores há séculos — e nunca tanto quanto no século XIX. O Drama de Wilde, Salomé, no qual a ópera de Strauss está baseada, segue os passos de outros poemas, romances e pinturas importantes de Salomé. Wilde certamente conheceu o Atta Troll de Heinrich Heine; poema escrito em 1841 de grande popularidade na França. No poema, é Herodias quem se apaixona por Jochanaan e quem beija a cabeça decepada. Gustav Flaubert escreveu uma versão objetiva, em terceira pessoa, que Wilde muito admirava. O poema Herodiade do simbolista Stéphane Mallarmé, que explora o casamento de Herodes e Herodias, também influenciou Wilde, bem como A Rebours, de J.K. Huysmans.

Wilde possuía uma compreensão substancial sobre a representação de Salomé no mundo artístico ocidental, mas sempre tinha alguma ressalva negativa sobre a interpretação do tema por alguns artistas. Ele pensava que a Salomé de Rubens era uma ‘apoplética Maritornes’; a Salomé de Leonardo era extremamente impalpável e a célebre Salomé de Regnault, uma simples “cigana”. Somente a famosa exibição parisiense com pinturas da Salomé de Gustav Moreau satisfez o escritor.

A versão da história contada por Wilde tem suas origens em dezembro de 1891, quando Wilde e uma grupo de escritores franceses discutiam Salomé num café de Paris. Wilde começou a trabalhar imediatamente em Salomé ao regressar à casa. Poucas horas depois, ele havia terminado grande parte da peça. A lenda diz que Wilde, naquela mesma noite, se dirigiu a um bar na vizinhança e pediu à banda da casa para tocar uma música que evocasse “uma mulher descalça, dançando sobre o sangue de um homem a quem ela desejava e matou”.

A Salomé de Wilde é uma personagem extraordinariamente dual. Por um lado, Wilde acreditava que ela era a incorporação da sensualidade — ele contou que, enquanto escrevia Salomé, passava por joalherias nas ruas de Paris e contemplava como adornar sua personagem. Esse mesmo ser sensual era, para Wilde, agressivo e cruel, com uma libido insaciável. Ele imaginava Sarah Bernhardt no papel principal (no fim das contas, a atriz foi impedida pela censura francesa de interpretar o papel). Mas Wilde também vislumbrava uma Salomé divina e pura —imagem provavelmente inspirada por uma pintura de Bernardo Luini. Para Wilde, Salomé tornou-se a combinação de um ser sensual, infantil e divino somado à força destrutiva da natureza.

Wilde tinha forte afinidade com o movimento de arte simbolista, influencia explícita em Salomé. O poeta Mallarmé, um dos líderes do movimento simbolista, afirmava que a tarefa da poesia era revelar e cristalizar as formas essenciais que se escondem dentro da realidade. Simbolistas acreditavam que somente através dos símbolos o homem poderia alcançar as verdades incompreensíveis, chegando assim à transcendência.

Um dos símbolos mais famosos de Salomé é a lua e quase todas as personagens do drama fazem menção ao satélite. O confuso Narraboth vê a lua como uma princesa encantadora, a personificação de Salomé; o pajem de Herodias vê a lua como uma mulher morta. Para Salomé, a lua é uma deusa casta que nunca se rebaixou aos homens enquanto que para Herodes, é como “uma mulher louca, uma mulher louca que busca amantes por todas as partes”. E a banal Herodias desdenha: “a lua é como a lua e só.” Através da repetição e variação, o símbolo começa a repercutir e ganhar maior significância.

Wilde também estava afiliado com o movimento de arte decadista, o qual compartilhava seu conceito de arte pela arte. No prefácio do Retrato de Dorian Gray, Wilde faz a seguinte declaração sobre a procura do “belo” e da arte:


Aqueles que encontram o feio nas coisas belas estão corrompidos sem serem charmosos. Isso é um defeito.

Aqueles que encontram o belo nas coisas belas são os cultos. Para estes há esperança.

Estes são os escolhidos para quem as coisas belas significam somente Beleza.



Wilde fez um espetáculo para o mundo ver de sua crença de que toda a arte é inútil e de que tudo o que importa são as aparências. Em grande parte, o escritor sofreu por causa de suas idéias; seu desafio explícito aos ideais vitorianos de repreensão e decência o levou à censura e conseqüente aprisionamento.

O drama Salomé foi concluído em janeiro de 1892, depois que Wilde retornou à Inglaterra. Foi traduzido do seu original em francês para o inglês pelo Lorde Alfred Douglas. A peça já estava sendo ensaiada há duas semanas quando a comissão do Lorde Chamberlain censurou o trabalho (sob a desculpa de que a representação de cenas bíblicas não era permitida). George Bernard Shaw e William Archer defenderam a peça, mas ficou evidente que Salomé não tinha que ser estreada na Inglaterra. Wilde ameaçou imigrar para a França e adiantou seus planos para a publicação da peça em inglês. A peça foi finalmente estreada em Paris, em 1896; Wilde não estava presente. O escritor estava servindo uma sentença de trabalho forçado em Reading Goal. Em 1909, a peça tinha sido traduzida para quase todos os idiomas europeus. Atualmente é a mais famosa versão dramática da estória de Salomé.

(retirado do site "Metropolitan Opera Internacional Radio")

http://archive.operainfo.org/broadcast/operaBackground.cgi?id=92&language=4


Libreto /Salomé


SALOMÉ

Paulo Corrêa Lopes


Só, na cisterna, João Batista em prece
sonha. Estende-se a noite silenciosa,
e, na nudez da solidão piedosa,
o desespero que o tortura esquece.

Dorme o palácio. Salomé ansiosa,
como pantera atroz que se enraivece,
em contorções se agita, e se estremece,
debruçada num tálamo de rosa...

Quase nua se ergue, e altivamente,
nos estos da volúpia que a devora,
desprende as tranças sobre a espádua ardente.

Treme-lhe o lábio aparecendo um beijo,
clama pelo Profeta, e anseia, e chora,
nas algemas da carne e do desejo!

sábado, outubro 30, 2004


Salome / Pierre Bonnaud


Salomé

Mário de Sá Carneiro


Insônia roxa. A luz a virgular-se em medo,
luz morta de luar, mais alma do que lua...
Ela dança, ala range. A carne, álcool de lua,
alastra-se pra mim num espasmo de segredo...

Tudo é capricho ao seu redor, em sombras fátuas...
O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou...
Tenho frio...Alabastro!...A minha alma parou...
E o seu corpo resvala a projetar estátuas...

Ela chama-me em íris. Nimba-se a perder-me,
golfa-me os seios nus, ecoa-me em quebranto...
Timbres, elmos, punhais... A doida quer morrer-me:

mordoura-se a chorar – há sexos no seu pranto...
Ergo-me em som, oscilo, e parto e vou arder-me
na boca imperial que humanizou um santo...

quinta-feira, outubro 28, 2004


Salome dancing before Herod / Gustave Moreau, 1876


Nas minhas andanças pela selva virtual, encontrei o quadro de Gustave Moreau "Salome dancing before Herod" (1874-1876). Já tinha estudado outra pintura de Moreau mais detalhadamente numa disciplina de Intersemiótica - "Júpiter e Sêmele", indizivelmente fantástica. Mas nunca tinha me dado conta das panteras de Salomé.

O felino reaparece em quadros de outros artistas marcando presença em peles de tigre ou de onça. A bíblica sacerdotisa da Lua e sua Sombra. Símbolo da luxúria, a pantera? Alude aos maneios sensuais da dançarina dos sete véus?

Bem, eu não me satisfaço nunca com poucas informações, nunca - um inferno em vida, no qual quero sempre arder. Dei de cara com a vasta iconografia inspirada em Salomé; um site só sobre decapitações (www.sepulchritude.com/chapelperilous/decollete/decollete-salome.html); um poema de Mário de Sá Carneiro, a peça de Oscar Wilde, Mallarmé, Flaubert, Apollinaire e ... Dorothy Parker.

Continuo na selva.
Durante os próximos dias, vamos vistar Salomé.

Zoe

domingo, outubro 17, 2004


STRENGTH / The Blue Rose Tarot Deck by Paula Gibby

E existe algo mais poderoso do que a energia do Mago somada à Imperatriz?
A Pantera Azul está solta - a Caixa de Pandora aberta.

{* *}

O Tigre


William Blake


Tigre! Tigre! Brilho, brasa
Que a furna noturna abrasa,
Que olho ou mão armaria
Tua feroz simetria?

Em que céu se foi forjar
O fogo do teu olhar?
Em que asas veio a chama?
Que mão colheu esta flama?

Que força fez retorcer
Em nervos todos o teu ser?
E o som do teu coração
De aço, que cor, que ação?

Teu cérebro, quem o malha?
Que martelo? Que fornalha
O moldou? Que mão, que garra
Seu terror mortal amarra

Quando as lanças das estrelas
Cortaram os céus, ao vê-las,
Quem as fez sorriu talvez?
Quem fez a ovelha te fez?

Tigre! Tigre! Brilho, brasa
Que a furna noturna abrasa,
Que olho ou mão armaria
Tua feroz simetria?


(tradução de Augusto de Campos)

Posted by Hello

quinta-feira, outubro 14, 2004


Private Dancer/Jack Vettriano Posted by Hello

Está na hora da onça beber água


ela vai com sede ao pote
ela vai com alma, a pintada,
a mansa, com a calma
da fera que espreita, a bela.
ela vai com pele de onça, a ponta
da pata macia na terra, ela
alta, básica, séria, ela salta
vai além do bote, ela morde
ela sabe.


Janice Caiafa
de Neve Rubra/Sette Letras/96

sexta-feira, outubro 08, 2004


Uma lágrima  Posted by Hello

O mundo menos doce


Tem coisas que não dá pra entender. Postei a foto de minha irmã com o gatinho no dia 4. Entre centas fotos de mulheres & gatos, escolhi essa - um pouco ressabiada, confesso: - será que minha irmã não acharia ruim que eu colocasse a foto dela no blog? Depois pensei que não, de forma alguma. Maria Tereza é afável, menos quando dança flamenco. E depois, porque se chatearia com uma homenagem? Efetivamente, não se chateou.

Há poucos momentos bateu o telefone, bem quando eu estava para postar algo por aqui. E me deu a má notícia: o gatinho Mehl morreu. Um dos rottweillers (fssssssst, que me perdoem os cachorrófilos, eu não gosto, não gosto MESMO) deu uma patada no bichinho. E lá se foi o Mehl, curtir suas outras vidas em algum céu felino. Estou triste, bem triste. Não tão triste quanto minha irmã, que ligou chorando. Mas o suficiente para lamentar muito. Ele era lindo, amigável, doce.

Bye, gatinho Mehl.
Faz companhia para o meu Sombra aí no paraíso dos gatos.

Zoe
p.s.: leitores, poupem-me da observação de que os cachorros são inimigos naturais dos gatos. EU SEI.


segunda-feira, outubro 04, 2004


Mehl e Maria Tereza Posted by Hello

Mulher e Gata



Ela brincava com a gata
E era admirável ver as duas,
A branca mão e a branca pata,
Brincando à noite, na penumbra.

Ela escondia - a celerada ! -
Sob as mitenes de fio escuro
As assassinas unhas de ágata,
Claras, cortantes, como um gume.

Fingia-se a outra adoçada
E retraía a garra afiada,
Mas o diabo nada perdia...

E no toucador retinia
O som de aéreas gargalhadas
E quatro pontos fosforesciam.


Paul Verlaine (1844-1896)
p.s.: dedico esse belo poema de Verlaine para minha irmã, Maria Tereza e para minha amiga Adalgisa, a dona de Deus.

sexta-feira, outubro 01, 2004


O Descanso do Gato, de Vicky Dolabella Posted by Hello

O Olhar Abstrato dos Gatos


Nesse último domingo em Curitiba, curti O Olhar Abstrato dos Gatos - vernissage de Vicky Dolabella no Solar do Rosário. Os trabalhos são magníficos, literalmente babei. Como se não bastasse o dia ensolarado, meu bom humor e a companhia da Valentina, Vicky é gatíssima e dona de um astral nota 1000. Ficava amiga facinho. Deviam inventar mais mulheres assim. E para completar, conhece a minha super ultra comadre, BRUXURSINHA (cadê, cadê?) que, depois que começou a trabalhar num certo jornal paulista, me esqueceu completamente. Sniff.... No problem. Um dia ela volta. Só fico aqui pensando quem cuida dos 9 gatos quando ela está fora - que somando com as nove vidas de cada um deles mais a dona da casa ... bem, são 82 vidas no apartamento da Bru.

Aqui em casa somos mais econômicos - 21 vidas tá bom demais.


ZdC

p.s.: Vicky tem um site - http://www.vickydolabella.com.br/

Gatos Apaixonados, de Vicky Dolabella Posted by Hello

MISTER MISTÓFELIS


Precisas conhecer Mister Mistófelis!
Um misto de Felino e de Mefisto -
(Dúvida alguma sóbre sobre isto!)
Que zombem, mas não posso numa estrofe lhes
Dizer o que dele tenho visto.
Informa-se em alquímicos in-fólios,
Tem todas as patentes, monopólios
Para exercer performances e truques
Que herdou de condes, dráculas e duques.
Na prestidigitação
E nos passes que realiza
Ilude qualquer pesquisa
E cria nova ilusão.
Os mágicos do mundo inteiro estimam-no
Por ser de todos o maior prestímano.
Um, dois e três!
E era uma vez!
Vejam vocês!
Digo e estou certo:
Ninguém decerto
Chegou nem perto
Do Gato Mago-Mefisto-Félix!

Ele é pequeno e quieto, a cor é preta
Desde a ponta da orelha ao rabo esguio;
Esgueira-se na mais estreita greta
E se equilibra no mais frágil fio.
A carta que quiser, fácil afana
E é destro em dados, varas de adivinhos;
Ele sempre te engana que tem gana
De andar à caça apenas de "peixinhos".
Tira tudo do estofo da casaca,
Faz milagres com a caixa-de-surpresa;
Se um garfo lá se foi ou falta a faca,
E achas que te enganaste ao pôr a mesa -
O talher que inda há pouco evaporou-se
Surge num fosso como se osso fosse!
Vejam vocês!
Pois estou certo
Que ele é decerto
O mais desperto

O Gato Mago Mefisto-Félix!

Mostra um ar vagamente alienado
Quando a sua modéstia está em jogo...
Mas sua voz ouviu-se do telhado
Quando foi chamuscado pelo fogo.
E ouvimo-lo também ao pé do fogo
Quando ele faz das suas no telhado...
(Pelo menos na poltrona sabemos que só ronrona)
Eis aqui o atestado detalhado
De seu poder de mágico inconteste:
Certa vez a família em peso abala
A buscar no jardim inteiro o peste
Enquanto ele dormia em plena sala.
E fez agora aparecer, frajola,
Sete gatinhos dentro da cartola!
Vejam vocês!
Não há decerto
Um mais esperto

Que o Gato Mago Mefisto-Félix!


T. S. Eliot

Tradução de Ivo Barroso,
felinamente digitado por Ivan Justen Santana