terça-feira, março 28, 2006




AINDA NÃO TERMINEI O TÍTULO


amar-te, amor, causou-me ahs e susto
algo deixou-me presto a isto
isso de querer deu em dano e risco
medo de morrer pobre, fraco e puto

vem, amiga, seja uma boa inimiga
daquilo que só te deixa sozinha
não venha dizer que sim, que não, que é minha
no mais tardar agora, amor, me siga

antes que a má sorte lhe sorria
deixa que o azar de perder-me se afaste
e a mágoa transforme a palavra em magia

tenho medo, pavor, que a coragem desgaste
e aquela noite que sei que teremos um dia
seja um dia qualquer, como este que nasce.


Marcos Prado

sexta-feira, março 24, 2006


DRAWING DOWN THE MOON

De tanto te pensar, me veio a ilusão.
A mesma ilusão
Da égua que sorve a água pensando sorver a lua.
De te pensar me deito nas aguadas
E acredito luzir e estar atada
Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.
De te sonhar, tenho nada,
Mas acredito em mim o ouro e o mundo.
De te amar, possuída de ossos e abismos
Acredito ter carne e vadiar
Ao redor dos teus cismos. De nunca te tocar
Tocando os outros
Acredito ter mãos, acredito ter boca
Quando só tenho patas e focinho.
De muito desejar altura e eternidade
Me vem a fantasia de que Existo e Sou.
Quando sou nada: égua fantasmagórica
Sorvendo a lua n'água.

Hilda Hilst

sábado, março 18, 2006

GÊNESIS




Há em você um silêncio que escuto
Um céu que vejo enquanto juntos,

há um amor que se parece com tudo, menos susto,
há uma mente & um corpo no vazio dessa paisagem
(quanto teu rosto, viagem, ressurge nos tremores da miragem)
ou quando a toco, ou quando em pensamento

a toco, como um sopro,
você mesma, que amo, enigmagem.

E há uma chuva que cai só uma vez por ano.
Há o sibilo misterioso da serpente.

E há seu beijo
que há de me fazer humano.




Rodrigo Garcia Lopes
Tempe, Arizona, outubro de 1999

quarta-feira, março 08, 2006

Milágrimas


caligrama de apollinaire


Em caso de dor ponha gelo
Mude o corte de cabelo
Mude como modelo
Vá ao cinema dê um sorriso
Ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo
Se amargo foi já ter sido
Troque já esse vestido
Troque o padrão do tecido
Saia do sério deixe os critérios
Siga todos os sentidos
Faça fazer sentido
A cada mil lágrimas sai um milagre

Caso de tristeza vire a mesa
Coma só a sobremesa coma somente a cereja
Jogue para cima faça cena
Cante as rimas de um poema
Sofra penas viva apenas
Sendo só fissura ou loucura
Quem sabe casando cura
Ninguém sabe o que procura
Faça uma novena reze um terço
Caia fora do contexto invente seu endereço
A cada mil lágrimas sai um milagre

Mas se apesar de banal
Chorar for inevitável
Sinta o gosto do sal do sal do sal
Sinta o gosto do sal
Gota a gota, uma a uma
Duas três dez cem mil lágrimas sinta o milagre
A cada mil lágrimas sai um milagre


Alice Ruiz

segunda-feira, março 06, 2006

primeiro poema para alice

sábado passado, no aniversário de estrela leminski, revi minha amiga alice. fiquei feliz - estava com saudade da comadre. alice não mora mais aqui, está em são paulo, cidade em que as coisas acontecem (em curitiba, tudo gira em torno de um único e invísível eixo). lá pelas tantas, voltei do banheiro ostentando um batom vermelho e alice comentou: - o que é este batom vermelho súbito de sua parte? - o que fez a minha estranha memória arriscar de cor um poema do leminski publicado no sangra cio, coletânea de poetas paranaenses, de 1980. depois de declamado, alice contou que este foi o primeiro poema que paulo fez para ela. resolvi blogar em homenagem a um amor que nunca acabou.
afinal: amor, então, também acaba? parece que nesse caso a vida transformou em rima.



minha cabeça cortada
joguei na tua janela
noite de lua
janela aberta

bate na parede
perdendo dentes
cai na cama
pesada de pensamentos

talvez te assustes
talvez a contemples
contra a lua
buscando a cor de meus olhos

talvez a uses
como despertador
sobre o criado mudo

não quero assustar-te
peço apenas um tratamento condigno
para essa cabeça súbita
de minha parte


p.leminski
sangra cio 1980

sábado, março 04, 2006




o amor é uma aposta estranha
o vencedor pelo vencido
cada um com o seu drama
contudo, não é nada
e o mundo inteiro reclama
quantos cavalos errados
para o único que ganha

Zoe

quarta-feira, março 01, 2006



quebra-cabeça do amor


liga a motoserra, amor
cerra meus olhos
esmerilha dentes e gengivas
capa as orelhas
esmigalha o nariz
centrifuga o cérebro
kaputa o pescoço
destronca a clavícula
destrinça as costelas
parta o coração
afoga os pulmões
amputa o abdômen
esvazia o estômago
farofeia os miúdos
estripa as tripas
pica os culhões
desprega o cu
desmunheca as mãos
desliga os rádios
subtraia os úmeros
bamboleia os quadris
libera os fêmures
desrotula os joelhos
castiga as tíbias
opera os perônios
desande os pés
agora monta como quiser, amor


Marcos Prado & Aranha