quarta-feira, julho 20, 2005

Sono no Deserto de Mojave
Sylvia Plath



Aqui fora não há pedras de lareira,
Grãos quentes, simplesmente. É seco, seco.
E o ar, perigoso. O meio-dia age bizarramente
Sobre o olho da mente erigindo uma linha
De choupos à meia distância, o único
Objeto além da estrada louca, reta
Ao lado da qual se pode recordar pessoas e casas.
Um vento frio deve habitar essas folhas
E um orvalho deve acumular nelas, mais precioso que dinheiro,
Na hora azul antes do sol se erguer.
Ainda assim elas recuam, intocáveis como o amanhã,
Ou aquelas ficções cintilantes de água espirrada
Que deslizam adiante dos muito sedentos.

Eu penso nos lagartos arejando suas línguas
Na fissura de uma sombra extremamente pequena
E o sapo resguardando a gotícula de seu coração.
O deserto é branco feito o olho de um cego,
Desconfortável feito sal. Cobra e pássaro
Cochilam por trás de velhas máscaras de fúria.
Nós suamos como cães de lareira no vento.
O sol põe fora sua escória. Onde nós deitamos
Os grilos calor-rachados se congregam
Em suas armaduras pretas e gritam.
A lua diurna se acende como uma mãe penalizada,
E os grilos vem se arrastando aos nossos cabelos
Para passar a noite curta à toa.


Versão brasileira: Ivan Justen Santana

..................

Sleep In The Mojave Desert
Silvia Plath


Out here there are no hearthstones,
Hot grains, simply. It is dry, dry.
And the air dangerous. Noonday acts queerly
On the mind's eye erecting a line
Of poplars in the middle distance, the only
Object beside the mad, straight road
One can remember men and houses by.
A cool wind should inhabit these leaves
And a dew collect on them, dearer than money,
In the blue hour before sunup.
Yet they recede, untouchable as tomorrow,
Or those glittery fictions of spilt water
That glide ahead of the very thirsty.

I think of the lizards airing their tongues
In the crevice of an extremely small shadow
And the toad guarding his heart's droplet.
The desert is white as a blind man's eye,
Comfortless as salt. Snake and bird
Doze behind the old maskss of fury.
We swelter like firedogs in the wind.
The sun puts its cinder out. Where we lie
The heat-cracked crickets congregate
In their black armorplate and cry.
The day-moon lights up like a sorry mother,
And the crickets come creeping into our hair
To fiddle the short night away.

sábado, julho 09, 2005

Uma Paixão no Deserto


Bouguereau / Bacchante sur une panthère


Quando os raios do sol penetraram na caverna da mente deserta, pôs-se a lamber, bonita e coquete, o sangue das patas e do focinho; ao bocejar exibia sua terrível máquina dental e uma língua estupenda, rosa e lixa macia. Em ondulações de intensidade variável, um perfume denso acompanhava os movimentos do seu corpo e o RR enciumados: ruu...rruu Como uma mulher formosa, passava as mãos pelos pêlos da fera, dos cabelos à cauda nervosa de músculos sensíveis; arranhava devagar a nuca e os flancos sedosos e quentes; ela recolhia as garras nos estojos das patas feitos de veludo vivo, num ronronar de prazer: rru...rru... Artimanhosamente, entremostrava, exibia os seus indefiníveis encantos. O deserto passou a ficar como que povoado, passou a revelar-lhe todas as suas belezas sublimes - e a solidão, todos os seus segredos.

Décio Pignatari
baseado no conto "Une Passion dans le désert",
de Balzac

sábado, julho 02, 2005

Une Passion dans le désert
Honoré de Balzac





I

HISTÓRIA NATURAL DE UMA HISTÓRIA SOBRENATURAL


- É assustador esse espetáculo! – exclamou ela, ao sair do circo de feras do Sr. Martin.
Acabava de ver aquele ousado especulador trabalhando com sua hiena, para falar em estilo de cartaz.
Por que meios – continuou – terá conseguido domesticar seus animais para estar tão seguro da afeição deles a ponto de ...?
Esse fato que lhe parece um problema - respondi, interrompendo-a – é no entanto uma coisa natural.
Oh! – exclamou, deixando errar nos lábios um sorriso de incredulidade.
Julga então os animais inteiramente desprovidos de paixões? – perguntei-lhe. – Pois fique sabendo que nós lhe podemos dar todos os vícios devidos ao nosso estado de civilização.
Ela olhou-me com ar atônito.
Mas ao ver o sr. Martin pela primeira vez – prossegui – confesso que me escapou, como a você, uma exclamação de surpresa. Encontrava-me então perto de um antigo militar com a perna direita amputada, que entrara junto comigo. Aquele rosto me impressionara. Era uma dessas fisionomias intrépidas, marcadas com o selo da guerra e nas quais estão escritas as batalhas de Napoleão. Aquele velho soldado tinha antes de mais nada um ar de franqueza e bom humor, coisa que sempre me predispõe favoravelmente. Era sem dúvida um desses veteranos a quem nada surpreende, que encontram assunto para rir na última careta de uma camarada, enterram-no ou saqueiam-no alegremente, interpelam as balas com arrogância, enfim, cujas deliberações são rápidas, e que bem seriam capazes de confraternizar com o diabo. Depois de olhar atentamente o proprietário do circo no momento em que saía da barraca, meu companheiro franziu os lábios de modo a expressar um zombeteiro desdém com essa espécie de significativo muxoxo que se permitem os homens superiores, a fim de distinguirem dos ingênuos. Assim, quando me espantei da coragem do Sr. Martin, ele sorriu e disse-me com ar de suficiência, abanando a cabeça:
Isso não é nada !
Como! Não é nada? – retruquei. Se quisesse explicar-me esse mistério, eu lhe ficaria muito agradecido.
Após alguns instantes, durante os quais travamos relações, fomos almoçar no primeiro restaurante que se nos antolhou. À sobremesa, uma garrafa de champanhe devolveu toda a nitidez às recordações daquele curioso soldado. Contou-me a sua história, e eu reconheci que ele tivera razão em exclamar: Isto não é nada !


II

CURIOSIDADE DE MULHER

Chegando em casa, tantos afagos e promessas me fez ela que eu consenti em redigir-lhe as confidências de um soldado. No dia seguinte, ela recebeu, pois, este episódio de uma epopéia que se poderia denominar Os Franceses no Egito.


III

O DESERTO

Quando da expedição efetuada no Alto Egito pelo General Desaix, tendo um soldado provençal caído em poder dos berberes, foi conduzido por esses árabes aos desertos situados além das cataratas do Nilo.
A fim de colocar um espaço suficiente para sua tranqüilidade entre eles e o exército francês, os berberes empreenderam uma marcha forçada, só fazendo alto à noite. Acamparam ao redor de um poço oculto por palmeiras, junto às quais haviam precedentemente enterrado algumas provisões. Não imaginando que pudesse ocorrer ao prisioneiro a idéia de fugir, contentaram-se em amarrar-lhe as mãos e adormeceram todos, depois de ter comido algumas tâmaras e dado cevada aos cavalos.
Quando viu que seus inimigos não se achavam em estado de vigília, o ousado provençal serviu-se dos dentes para apoderar-se de uma cimitarra; depois, valendo-se dos joelhos para segurar a lâmina, cortou as cordas que impediam os uso das mãos e viu-se livre. Apoderou-se em seguida de uma carabina e de um punhal, fez uma provisão de tâmaras secas, um saquinho de cevada, pólvora e balas, cingiu uma cimitarra, montou num cavalo e abalou em disparada na direção em que supunha achar-se o exército francês.
Impaciente por avistar um bivaque, apressou de tal modo o corcel, já fatigado, que o pobre animal expirou, rendido dos flancos, deixando o francês a pé no meio do deserto.
Depois de marchar algum tempo pelas areias com toda coragem de um forçado que se evade, o soldado viu-se obrigado a parar; o dia já findava. Apesar da beleza do céu pelas noites do Oriente, não se sentiu com forças para continuar o caminho. Felizmente pudera alcançar uma eminência de onde se elevavam algumas palmeiras, cuja folhagem, avistada de há muito, lhe despertara no coração as mais doces esperanças. Tão grande era o seu cansaço que se deitou sobre uma pedra de granito caprichosamente talhada em forma de catre, e ali adormeceu, sem tomar nenhuma precaução para a própria defesa durante o sono. Tinha renunciado a sua vida. O último pensamento que teve ao adormecer foi de pesar, pois já se arrependera de haver abandonado os berberes, cuja vida errante começava a sorrir-lhe depois que se via longe deles e sem recursos.
Foi despertado pelo sol, cujos implacáveis raios, tombando prumo sobre o granito, produziam um calor intolerável., Ora, a o provençal tivera a inabilidade de colocar-se em sentido inverso ao da sombra ....Contemplou aquelas árvores solitárias, e estremeceu: recordaram-lhe as fustes elegantes e coroadas de longas folhas que distinguem as colunas sarracenas da catedral de Arles. Mas, quando, depois de contemplar as palmeiras, lançou os olhos em redor de si, abateu-lhe sobre a alma o mais terrível desespero. Via um oceano sem limites. As areias escuras do deserto estendiam-se a perder de vista em todas direções, e fulguravam como uma lâmina de aço abatida por luz fortíssima. Não sabia se era um mar de gelo ou lagos unidos como um espelho. Transportado em vagas, turbilhonava acima daquela terra movediça um vapor de fogo.O céu tinha um brilho oriental de uma pureza desesperadora, pois que nada deixa desejar à imaginação. O céu e a terra estavam em fogo. O silêncio amedrontava com sua selvagem e terrível majestade. O infinito, a imensidade oprimiam a alma por todo a parte: nem uma nuvem no céu, nem um sopro no ar, nem um acidente no seio da areia agitada por miúdas vagas; enfim, o horizonte terminava, como no mar quando faz bom tempo, por uma linha de luz tão delgada quanto o fio de um sabre.
O provençal abraçou o tronco de uma palmeira, como se fosse o corpo de um amigo; depois, abrigado à sombra estreita e reta que a árvore desenhava sobre o granito, chorou, sentou-se e ali ficou, a contemplar com profunda tristeza o cenário implacável que se oferecia a seus olhos. Gritou como para tentar a solidão. Sua voz, perdida nas cavidades da colina, deu ao longe um triste som que não despertou eco; o eco estava em seu coração. O provençal tinha vinte e dois anos, armou a carabina.
“Nunca será tarde!”, pensou, pousando em terra a arma libertadora.

IV

O NOVO ROBINSON ENCONTRA UM SINGULAR SEXTA-FEIRA

Olhando alternadamente o espaço escuro e o espaço azul, o soldado sonhava com a França. Sentia com delícia as águas de Paris, recordava as cidades por onde havia passado, a fisionomia dos camaradas, as menores circunstâncias da sua vida. Enfim, sua imaginação meridional logo lhe fez entrever as pedras esquecidas da sua querida Provença nos jogos do calor que ondulava acima da toalha estendida no deserto. Temendo os perigos dessa cruel miragem, desceu à vertente oposta àquele por onde subira na véspera. Grande foi a sua alegria ao descobrir uma espécie de gruta naturalmente cavada nos imensos fragmentos de granito que formavam a base daquele montículo. Os farrapos de uma esteira denunciavam que aquele asilo fora antigamente habitado. Depois, a alguns passos dali, avistou tamareiras carregadas de frutos. Despertou-lhe então na alma o instinto que nos precede à vida. Teve esperança de viver o suficiente para aguardar a passagem de alguns berberes, ou talvez ouvisse em breve o ruído dos canhões, pois naquele momento Bonaparte percorria o Egito.
Reanimado por esse pensamento, abateu algumas pencas de frutos maduros a cujo peso as tamareiras pareciam vergar, e certificou-se, ao saborear aquele inesperado maná, que o habitante da gruta havia cultivado árvores: a polpa saborosa das tâmaras acusava com efeito os cuidados do seu predecessor. O provençal passou subitamente de um sombrio desespero a uma alegria quase louca. Tornou a subir o alto da colina e ocupou-se durante o resto do dia a cortar uma das palmeiras estéreis que na véspera haviam lhe servido de teto. Uma vaga lembrança o fez pensar nos animais do deserto e, prevendo que poderiam vir beber na fonte perdida nas areias que aparecia ao pé das rochas, resolveu proteger-se contra suas visitas, erguendo uma barreira à porta de sua ermida. Apesar do seu empenho, apesar das forças que lhe deu o medo de ser devorado durante o sono, foi-lhe impossível cortar a palmeira em vários pedaços naquele dia. Quando, pela tardinha, tombou aquela rainha do deserto, o ruído de sua queda ao longe, e houve uma espécie de gemido lançado pela solidão; o soldado estremeceu como se tivesse ouvido alguma voz predizer-lhe uma desgraça.
Mas, assim como um herdeiro que não lamenta por muito tempo a morte de um parente, ele despojou a bela árvore das suas largas e longas folhas verdes, que são seu poético ornamento, utilizando-as para reparar a esteira onde ia deitar-se.
Exausto de calor e de trabalho, adormeceu sob o forro vermelho da sua gruta úmida. Em meio à noite, foi seu sono perturbado por um ruído extraordinário. Sentou-se, e o silêncio profundo que reinava permitiu-lhe reconhecer o ritmo alternado de uma respiração cuja selvagem energia não podia permanecer a uma criatura humana. Um profundo medo, ainda aumentado pelas trevas, o silêncio e as fantasias do despertar, gelou-lhe o coração. Quase nem chegou a sentir a dolorosa contração de seu couro cabeludo quando, à força de dilatar as pupilas, avistou na sombra dois clarões fracos e amarelos. A princípio atribuiu aquelas luzes a algum reflexo de seus olhos; mas em breve, como a claridade da noite o ajudasse a distinguir gradativamente os objetos que se encontravam na gruta, percebeu um enorme animal deitado a dois passos de distância. Era um leão, um tigre, um crocodilo? O provençal não tinha instrução suficiente para saber em que subgênero estava classificado o seu inimigo; mas tanto maior foi o seu terror quando a ignorância lhe fazia imaginar todos os males ao mesmo tempo. Suportou o cruel suplício de escutar, de apreender os caprichos daquela respiração, sem recebe-la e sem ousar permitir-se o mínimo movimento. Um cheiro tão forte, como o cheiro exalado pelas raposas, todavia mais penetrante, mais grave, por assim dizer, enchia a gruta; e quando o degustou com as narinas, o terror do provençal chegou ao cúmulo, pois não podia mais por em dúvida a existência do terrível companheiro cujo antro real lhe servia de acampamento. Em breve os reflexos da lua, que se precipitava para o horizonte, alumiando a gruta, fizeram insensivelmente resplandecer a pele mosqueada de uma pantera.
Esse leão do Egito dormia, enrodilhado como um grande cão, calmo possuidor de um nicho suntuoso à porta de um palácio; seus olhos, abertos por um momento, se haviam fechado de novo. Tinha a face voltada para o francês.
Mil confusos pensamentos atravessaram a alma do prisioneiro da pantera.; primeiro pretendeu mata-la com um tiro de carabina, mas viu que não havia espaço suficiente entre ambos para visá-la, pois o cano teria ultrapassado o corpo do animal. E se ele despertasse?... Essa hipótese imobilizou-o . Ouvindo bater o próprio coração no meio do silêncio, amaldiçoava as pulsações demasiado fortes que a afluência do sangue produzia, temendo perturbar aquele sono que lhe permitia procurar um expediente salvador. Levou por duas vezes a mão à cimitarra, no intento de cortar a cabeça da inimiga; mas a dificuldade de cortar um pelo raso e duro obrigou-o a renunciar a esse ousado projeto.
“E se falhasse? Seria morte na certa”, pensou ele.
Preferiu os azares de um combate, e resolveu esperar o dia. E o dia não se fez desejar por muito tempo. O francês pôde então examinar a pantera; tinha o focinho tinto de sangue.
“Ela comeu bem!...”, pensou, sem indagar se o festim constara de carne humana. “Não vai ter fome quando despertar.”

V

TERÃO ALMA OS ANIMAIS?

Era uma fêmea. O pêlo do ventre e das coxas fulgurava de brancura. Várias pequenas manchas, semelhantes a veludo, formavam lindos braceletes em torno das patas. A cauda musculosa era igualmente branca, mas terminada por anéis negros. A parte de cima da pele, amarela como ouro fosco, mas bem lisa e suave, tinha essas mosqueaduras características, nuanças em forma de rosas, que servem para distinguir as panteras de outras espécies de felinos.
Aquela tranqüila e temível hóspede roncava numa atitude tão graciosa como a de uma gata deitada na almofada de uma otomana. Suas patas sangrentas, nervosas e bem armadas, estavam à frente de sua cabeça, que repousava em cima e da partiam essas barbas raras e retas, semelhantes a fios de prata. Se ela estivesse assim em uma jaula, o provençal, teria por certo admirado a graça daquele animal e os vigorosos contrastes das cores vivas que davam à sua samarra um fulgor imperial; mas, em tal momento, sentia a vista turbada ante aquele sinistro aspecto. A presença da pantera, embora adormecida, fazia-lhe experimentar o efeito que provocam no rouxinol, ao que dizem, aos olhos magnéticos das serpentes. A coragem do soldado acabou por desaparecer um instante à vista daquele perigo, ao passo que sem dúvida se teria exalçado ante a boca dos canhões ao vomitar metralha. No entanto, surgiu-lhe n’alma um pensamento intrépido, que secou em sua fronte o suor frio que lhe rorejava a testa. Agindo como os homens que, levados ao extremo pela desgraça, chegam a desafiar a morte e se oferecem a seus golpes, ele, sem o notar, encarou aquela aventura como uma tragédia, na qual resolveu desempenhar com honra o seu papel até a última cena.
“Anteontem, talvez os árabes me tivessem matado!...”, pensou.
Considerando-se como morto, esperou bravamente e com inquieta curiosidade o despertar da inimiga. Quando o sol apareceu, a pantera abriu subitamente os olhos; depois estendeu violentamente as patas, como que para desentorpecê-las e dissipar cãibras. Afinal bocejou, mostrando assim a temerosa aparelhagem de seus dentes e a língua fendida, dura como uma lima.
“É como uma mulherzinha!”..., pensou o francês, ao vê-la rolar-se e fazer os movimentos mais suaves e graciosos.
Ela lambeu o sangue que lhe tingia as patas e o focinho e coçou a cabeça com gestos repetidos, cheios de gentileza.
“Bem!...faze um pouquinho de toilette...”, disse consigo o francês, que, ao recobrar coragem, recuperara também seu bom-humor. “Vamos agora dar-nos bom dia.”
E segurou o punhal curto de que desembaraçara os berberes.
No mesmo instante, a pantera voltou a cabeça para o soldado e olhou-o fixamente, sem avançar. A fixidez de seus olhos metálicos e sua insuportável claridade fizeram estremecer o francês, sobretudo quando o animal se encaminhou para ele; mas o soldado contemplou-a com ar caricioso e, olhando-a como para magnetiza-la, deixou-a aproximar-se; em seguida, após um movimento tão suave, tão amoroso como se quisesse acariciar a mais linda mulher, passou-lhe a mão sobre todo o corpo, da cabeça à cauda, irritando com as unhas as flexíveis vértebras que dividiam o dorso amarelo da pantera.
O animal ergueu voluptuosamente a cauda, seus olhos se abrandaram; e quando, pela terceira vez, o francês executou aquele interesseiro gesto de afago, ela fez ouvir um desses ronrons com que os nossos gatos exprimem seu prazer; mas aquele murmúrio partia de uma garganta tão possante e profunda que reboou na gruta como os últimos acordes de um órgão numa igreja. O provençal, compreendendo a importância de seus carinhos, redobrou-os de modo a atordoar, a estupidificar aquela imperiosa cortesã. Quando se julgou seguro de haver extinguido a ferocidade da caprichosa companheira, cuja fome fora tão felizmente aplacada na véspera, ele se ergueu e quis sair da gruta; a pantera deixou-o partir, mas, depois que ele galgou a colina, saltou com a rapidez dos pardais pulando de um ramo a outro, e veio esfregar-se de encontro ás pernas do soldado, arqueando o dorso à maneira das gatas; depois, contemplando seu hóspede com um olhar cujo brilho se tornara menos inflexível, lançou esse grito selvagem que os naturalistas comparam ao ruído de uma serra.
- Ela é exigente! – exclamou o francês, sorrindo.
Tentou brincar com as suas orelhas, acariciar-lhe o ventre e coçar-lhe fortemente a cabeça com as unhas; e percebendo o seu êxito, fez-lhe cócegas no crânio com a ponta do punhal, espiando o momento de mata-la; mas a dureza dos seus ossos fez-lhe temer um insucesso.
A sultana do deserto aprovou as habilidades de seu escravo, erguendo a cabeça, alongando o pescoço, acusando a sua embriaguez pela tranqüilidade de sua atitude. O francês pensou de súbito que, para assassinar aquela bravia princesa, era preciso apunhala-la na garganta, e ia erguendo a lâmina, quando a pantera, já satisfeita por certo, se deitou graciosamente aos seus pés, lançando-lhe de tempos em tempos uns olhares em que, apesar do rigor nativo, se esboçava confusamente a benevolência. O pobre provençal comeu as suas tâmaras, apoiado a uma das palmeiras; mas lançava alternadamente um olhar investigador para o deserto, em busca de libertadores, e para sua companheira, a fim de espiar-lhe a incerta clemência. A pantera olhava para o lugar onde caíam os caroços de tâmara, de cada vez que ele jogava um, e seus olhos exprimiam então uma incrível desconfiança. Examinava o francês com uma prudência comercial; mas esse exame lhe foi favorável, porque, quando ele findou o seu magro repasto, ela começou a lamber-lhe os sapatos, e com uma língua rude e forte, retirou miraculosamente a poeira ali incrustada.
“Mas e quando ela tiver fome?...”, pensou o provençal.

(continua - ou não ...)
obs.: a gravação é do disco Temperamental. A voz é do poeta Décio Pignatari (com Livio Tragtemberg e Wilson Sukorski)