quinta-feira, julho 15, 2004

A Suave Pantera

I


Como qualquer animal,

olha as grades flutuantes.

Eis que as grades são fixas:

Ela, sim, é andante.

Sob a pela, contida

- em silêncio e lisura -

a força do seu mal,

e a doçura, a doçura,

que escorre pelas pernas

e as pernas habitua

a esse modo de andar,

de ser sua, ser sua,

no perfeito equilíbrio

de sua vida aberta:

una e atenta a si mesma,

suavíssima pantera.


II


É suave, suave, a pantera,

mas se a quiserem tocar

sem a devida cautela,

logo a verão transformada

na fera que há dentro dela.

O dente de mais marfim

na negrura toda alerta,

e ser do princípio ao fim

a pantera sem reservas,

o fervor, a força lúdica

da unha longa e descoberta,

o êxtase da sua fúria

sob o melindre que a fera,

em repouso, se a não tocam,

como que tem na singela

forma que não se alvoroça

por si só, antes parece,

na mansa, mansa e lustrosa

pelúcia com que se adorna,

uma viva, intensa jóia.


III


Uma intensíssima jóia,

do próprio sangue animada,

tão preciosa, tão preciosa,

que é preciso não tomá-la.

Que duro sangue a vermelha!

Que silêncio a não reparte!

Em si mesma reluzente

a inteira imobilidade.

Mas o ardor, esse deleita,

com que a jóia se transforma,

se se move, no animal

que a própria jóia comporta.

O cuidado - isso extasia -

com que a jóia se transmuta:

com patas, pernas e olhar

onde se extrema outra fúria.


VI


Mas é no amor que essa fúria

alcança de si o máximo.

À parte qualquer luxúria,

à parte a falta de tato,

se se alça e ganha a medida

de seu corpo todo casto,

há que lhe ver a esbelta e lisa

figura de todo lado,

quando toda se descobre

- como um cristal se estilhaça -

amando a vida, ai, amando

a vida que passa, passa.

Tão projetada num sonho,

nem se diria uma fera,

contida, casta e polida,

com tanto furor interno.


V


Com tanto furor interno,

quem a livra, quem a livra

de ser o seu próprio inferno,

de, pelo fogo da ira,

consumir-se estando quieta,

de acabrunhar-se sozinha.

Nem se diria uma fera!

Nem se diria rainha!

As patas pisando o chão

têm uma dura leveza,

os pelos brilhando de ônix,

- de si mesma prisioneira -

caminha de um lado a outro

como pelo mundo inteiro.

Há esmeraldas de silêncio

nos seus olhares acesos.


VI


O olhar tão aceso

revela, revela.

Que força de abismo

na virgem pantera.

Que força de amor

na sua recusa;

o ventre cerrado

- quem julga? quem julga?

e a sua ventura

violenta, sedenta,

ensaiados membros

em surda paciência.

É vaga e concreta,

como que inspirada:

flutua em si mesma,

parada, parada.


VII


Parada, parada,

quase se humaniza,

todo o viço de asas

na cara tranqüila,

flexuosa aspirando

- quem mata, quem mata?

Como uma pessoa

de forma coleada.

No entanto a narina,

no entanto a pupila

- relevos de sombra -

ah, se a denunciam

mais que uma pessoa,

poderosa e bela:

macia, macia,

esplêndida fera.


VIII


Esplêndida fera:

onírica e lúbrica

como pode às vezes

ser uma pantera.

Negra ela rebrilha,

presente a si mesma,

como se invadida

de uma luz avessa,

como adiamantada

de uma luz escura,

afoita e inefável

quem a subjuga?

Afoita e inefável

qual nenhuma besta,

cingida ao que em si

é a sua natureza.


IX


É da sua natureza

ser apenas o que a anima:

uma força elementar

como uma raiva contida,

uma violenta doçura

que bruscamente a delira

de si mesma, de si mesma,

- tão fogosa e volitiva!

Tão puramente animal

na graça oblíqua e felina!

Com uma forma tão espessa

que parece refluída.

Compraz-se em ser o seu corpo

com a mesma selvageria

com a mesma libação

todo o ímpeto se amotina.


X


A forma espessa da pantera,

um tal negrume e tal pelúcia,

às vezes quase que a confundem

com todas as demais panteras,

mas só naquilo que por fora

tem uma existência concreta,

naquilo só que se objetiva

formosamente sobre a relva:

olhos detidos de tão verdes,

corpo luzindo sobre as pernas,

um certo modo de mover-se

sobre si mesma, terna e quieta.

Porque ela é igual só a ela mesma,

se com ardor alguém a observa,

mas por dentro, tão escondida

como no fundo da ostra a pérola.


XI


Como no fundo da ostra e pérola

ela se deita veludosa,

mas anda com patas rebeldes

seu coração com uma glória.

Tem um ritmo de silêncio

a força com que ele desprega

as patas a cada momento,

numa espécie de ânsia secreta.

Violento é o sono do seu corpo,

mas sem aspereza nenhuma,

igual à queda de uma coifa

brusca e silente na verdura,

sem direção, igual à paina

mas uma paina concentrada,

mas uma paina vigorosa,

seu sono cego, cheio de asas.


XII


Se adormece a pantera

ou se acorda suavíssima,

é sempre a mesma fera

repousada e instintiva.

Há quem pense em veludo

ou cetim, contemplado

o pelame felpudo

e o deslizar tão brando.

Quieta ou em movimento,

há qualquer coisa nela

que lembra um monumento

pelo que ele revela:

um certo porte airoso

que o tempo não consome,

e um fruir-se gasoso,

que na fera é uma fome.


XIII


A fome de um bicho

- e mais se é pantera,

não tem o limite

que em gente tivera.

Não é como a fome

violenta, direta,

subjetiva, do homem,

a fome da fera.

A fome de um bicho

é cruel e eterna,

e toda inconsciente,

com uma força interna.

É fome indistinta

espalhada nela,

com íntima fúria

que ela não governa.


XIV


A liberdade da pantera

está justamente nisto:

que nem ela se governa,

e o que sucede é imprevisto.

Essa a vantagem da fera:

uma força que ela abriga,

inconsciente, dentro dela

- sob a aparência tranqüila -

e de repente se revela,

mas uma espécie de fúria,

que atinge inclusive a ela,

mas numa espécie de luta,

que é o modo que tem a cólera

de mostrar-se numa fera,

e que é a sua única forma

de ser pura, além de bela.


XV


Outra vantagem da pantera

é que sendo ela tão precisa,

tão colada ao próprio contorno,

não é, como um mastro, fixa,

e nem se aguça como um mastro,

apesar de constante e seca,

apesar de brilhante e fria

como um mastro ostentar sua seda,

apesar de picar-se toda

como um mastro, de luz marinha;

ela é flexível e se encolhe

(o que já não sucederia

com mastro algum) ou bem se alarga,

em contínuo fluxo e refluxo,

como a onda em espasmos de onda,

fiando-se no seu próprio fuso.


XVI


Além de precisa é ubíqua,

outra vantagem mais forte.

Por toda parte é sensível

sua graça, como um broche,

ou como coisa pousada

e em si mesma repentina:

os olhos onde violetas

cobram cores agressivas,

a cauda suspensa e lisa

como nuvem sossegada,

não solta, não qualquer nuvem,

nuvem presa como uma asa,

o corpo todo concreto,

todo animal, perecível,

e mais uma ânsia por dentro,

de ser livre, livre, livre.


Marly de Oliveira, 1960

2 comentários:

Ivan disse...

Lindeza de poema, linda Zoe.

Mas meu cérebro catapulgo me força a alertar:
acho que falta um "o" no verso 8 da parte II:
do princípio aO fim......

Perdoe mais essa impertinência, suavíssima...

Aliás, você não vai acreditar,
mass eu estava pensando que esse livro
da dona Marly era perfeito pro seu blog,
não faz uma semana...

A Marly e seu poema são muito melhores
que aquele Chamie meio capenga...

Putz, lá vou eu de novo me enrascando
nas garras da felina...

Tome aí então meu coração

*arranca o coração do peito e joga pela tela*

Zoe de Camaris disse...

eu sou suspeitíssima para tecer críticas ao poema do chamie, por motivos óbvios. mas que a dona marly, arrasa, arrasa, não é mesmo?
grata mais uma vez pela dica, alteração feita.

besos todos,
zoe