terça-feira, julho 27, 2004

Perfume de Pantera - estratégias fatais de sedução



Preferir a pantera ao anjo,
Condensar o vago em preciso


João Cabral de Mello Neto




A Sedução é o "artifício do mundo", palavra de Jean Baudrillard. Na religião, a sedução é considerada uma estratégia do Diabo, que poderia encarnar-se em uma bruxa ou em um amante - um desvio de rota. A Lilith dos textos apócrifos, primeira mulher de Adão, é um protótipo da Sedução.

O poder da Sedução é mais forte do que a Realidade porque é inesperado. Para o pensador francês, Sedução é Aparência e por isso, pode mais do que a Verdade - questão polêmica, é claro.

A falta de sentido da Sedução derrubaria facilmente a projeção de sentido a que damos o nome de Realidade. Simplificando, na terminologia baudrillardiana, a Realidade equivaleria ao sentido de “produção”, ou seja, qualquer trabalho a ser realizado. Quando saímos dos limites do que chamamos de Realidade, e entramos no excesso - onde perdemos o sentido de Realidade - penetramos em uma esfera sobre a qual não temos nenhum controle.

Exemplos: uma mulher sai para trabalhar e é seduzida por um homem misterioso que cruza o seu caminho; um artista é atraído por um novo conceito em arte; uma publicidade nos seduz com um teaser. Em todos estes casos, experimentaríamos um enfraquecimento das nossas projeções usuais de sentido, deixando-nos prender pelo novo.

A Sedução, situação imprevista, é mais forte que a Produção - o trabalho a ser realizado. A Sedução desvia, desordena, se funde com nossas projeções e em casos mais graves, anula a Produção. A Sedução está ao lado do Caótico que, por definição, não se sujeita a nenhuma Produção.

Baudrillard dedica todo um livro ao tema. E nos oferece um dado importante, o seu caráter dialético - Toda Sedução é uma Não-Sedução ou vem de uma Não-Sedução. Como? Isso mesmo. A Sedução funciona melhor na ausência do que na presença.

Pessoas “verdadeiramente” sedutoras possuem uma aura de encantamento e mistério que foge à capacidade de qualquer explicação sensata. Seduzem por um artifício natural - porque são sedutoras e ponto. Emanam algo indefinível e altamente atrativo. Não podemos esquecer também daquelas que montam suas táticas como estratégias de guerra, entre minuciosos cálculos e maquinações. A Sedução sofisticada atua por mecanismos estéticos, sutis, como por exemplo ... bem, melhor não entrar em detalhes.

Deixemos de lado os estereótipos do sedutor - o D. Juan Grudento e a Sereia Derramada. Suas táticas são infantis e com um mínimo de know how por parte das “vítimas”, têm seus ardis facilmente desmantelados. A Sedução vulgar atua por insistência. E então, já não é sedução.

O Encanto atua na esfera do ocultamento, do que foge à compreensão imediata. É máscara, é maquiagem, é perfume. Para que seja efetiva, a Sedução mascara.

Dentro da proposição dialética de Baudrillard encontramos o terceiro termo: A Sedução, sendo uma Não-Sedução – signo vazio - é também uma Auto-Sedução. Antes de seduzir o Outro, sou vítima da Sedução. O sedutor é sempre um seduzido. Só se seduz o que já nos seduziu. E é nesse momento que a Pantera cai em sua própria armadilha.


O Perfume


Cheiro de jasmim, uma casa deserta - estanco o passo imediatamente: os primos, a casa de minha avó. Pequenos olhos rasgados de afeto, portrait tridimensional. Balas de canela na língua, o contato do seu braço; xale negro de lã grossa roçando a face rosada de criança. O grito de Serginho - onde estão os gibis velhos? Dentro do baú. As revistas estão dentro do baú.

Tudo isso em um átimo de segundo. Sensações múltiplas escorregando ao mesmo tempo: visão, tato, paladar, audição. Estou atrasada, tenho que entregar um texto na redação. Mas nada impede que o perfume do jasmim venha e me envolva. Sou presa do seu fascínio cheio de lembranças. Invade repentino, num arrebatamento silencioso. O perfume é momentâneo e fugaz mas age bruscamente, procurando com seus etéreos dedos, memórias no meu arquivo cerebral.

Vivemos a mercê do olfato, o mais primitivo dos sentidos. A memória olfativa, a mais duradoura das memórias, está ligada ao sistema límbico, área cerebral que é responsável pela produção das emoções e que por sua vez está vinculado ao hipotálamo, região do cérebro que coordena os hormônios causadores dos impulsos instintivos e sexuais.

O feromônio, um hormônio exalado por animais e também por pessoas em busca de um companheiro, é uma substância atrelada às reações inconscientes e instintuais. Hoje, sintetizado, encontra-se à venda para quem conta com essa estratégia para atrair parceiros sexuais, já que escondemos nosso cheiro habitual com perfumes sintéticos.

Será que funciona? Creio que é bem mais interessante deixar que o nosso próprio feromônio recenda, já que é inato. No entanto, cada caso é um caso, e cada qual sabe a quantas anda o seu poder de atração. E depois, um perfume usado com discrição cria uma outra química, somado ao nosso cheiro natural.

A indústria de perfumes soma bilhões de dólares por ano. As grandes griffes não sobrevivem apenas das coleções de alta costura. Perfume dá ibope, o que não é novidade nenhuma. Cartier, um joalheiro aficionado pela pantera, criou diversas jóias tendo o negro felino como inspiração. E em 1987 lançou Panthère, uma fragrância imortal.

Plínio comenta que na cidade de Tarso existia um perfume muito raro e cobiçado: o Panterico. Mas e além do perfume de Cartier e do Panterico, qual a relação entre os aromas, a sedução e a pantera?


A Pantera


É Aristóteles em Animalium historia que funda um momento crucial na história mítico-fisiológico da pantera ao referir-se ao seu hálito perfumado, tradição esta retomada por Teofrasto e Plínio. A pantera seria o único animal a possuir o poder de encantar através do perfume. E Aristóteles constrói, em Problemata inedita, o tripé básico que configura as funções do felino: a caça, a atração (o hálito perfumado) e o engano pela beleza - marcado pela variação de sua pele, símbolo da instabilidade psíquica, da inteligência, da astúcia e da eroticidade.

Antes de dar o bote, é bom lembrar que ao nos reportarmos à Pantera (negra por excesso de melanina), buscando como referência textos clássicos e medievais, falamos também do Leopardo. Aventa-se que os autores estejam mencionando mais especificamente o Guepardo, bastante freqüente na Pérsia, já que no mundo grego a pantera é um animal sobretudo oriental. A Potnia Théron cretense, Senhora dos Animais, que tem traços em comum com a deusa Cibele, da Ásia Menor, é freqüentemente nomeada “A Senhora da Pantera”.

São três as estratégias fatais de Sedução da pantera: saber fingir-se de morta, atrair pela beleza do pêlo e através do perfume.

Eliano, ao relatar os costumes da Mauritânia, conta que a pantera finge-se de morta para capturar símios. Cerra os olhos e deixa as patas lassas em torno do corpo. Os macacos, desconfiados, ficam em suas árvores, observando-a. O tempo passa. O macaco mais atrevido desce e verifica, cuidadosamente. Repara se seus olhos já não se mexem, se não respira. Os outros macacos, ao notarem que o colega não corre perigo, acreditam no seu desejo e, sentindo-se seguros, descem das árvores. Acham que o animal está "morto" e saltam e pulam sobre seu corpo, menosprezando sua força e coragem, fazendo micagens. Nesse momento a pantera, que já tem sobre si todos os macacos que deseja devorar, com a rapidez de um raio os despedaça com suas garras e dentes afiados como se estivesse vingando-se daqueles que depreciaram a sua esperteza, recuperando a realeza e a supremacia.

O mesmo autor nos conta sobre o fascínio que a pele sarapintada da pantera causa nas ovelhas, que se quedam enlevadas ao admirá-la. A paralisia pelo fascínio. O animal, sabendo disso, deixa que as ovelhas aproximem-se e esconde a grande cabeça para não assustá-las. Apenas seu corpo fica descoberto. O desenlace do episódio é trágico: o objeto de contemplação passa ser objeto ativo - recupera sua ferocidade oculta e devora, sem maiores delongas, o contemplador.

Já ouvi menções que o mesmo ocorreria com o ser humano que se depara com a fera. Matteo Meschiari sublinha o que ocorreu a Livingstone, o explorador, entre outros que tiveram sensações semelhantes, ao sobreviver ao ataque de um grande felino: "o contato físico com o predador acontece em condições similares a um sonho de olhos abertos, em estado de privação sensorial quase prazeroso. O homem não reage, o cérebro anestesia o corpo, se instaura uma cumplicidade entre presa e predador para que tudo acabe o mais rapidamente possível". Um entorpecimento dos sentidos, quase um prazer sensual, toma conta da vítima. Os dedos rendados da morte são desejados, a pantera hipnotiza. Humanos: "sensualmente perdedores, voluptuosamente dominados". Não é possível fugir – resta entregar-se.

Mas a arma mais poderosa e sutil da pantera é o perfume.

A Pantera servir-se-ia do seu hálito perfumado para caçar e atrair suas presas que, sentindo sua adocicada suavidade, aproximam-se, fascinadas. As cabras e outros animais amigos do perfume seriam suas vítimas preferidas. Escondida atrás de frondosas árvores, é só uma questão de tempo para que se lance sobre os outros animais.

Teofraso compartilha da opinião de Aristóteles acerca do perfume da fera: uma qualidade que não é dividida com nenhum outro animal. Aristóteles chega a afirmar que a pantera é o único animal perfumado. Ninguém passaria incólume ao seu perfume, ao contrário, atirar-se-ia em direção ao aroma.

No entanto, reafirmando a visão de Baudrillard, o sedutor é, antes de tudo, o seduzido que se inebria com suas próprias qualidades projetadas - a pantera também é atraída pelo perfume. Nada funciona em via de mão única.

Oppiano, no seu poema sobre a caça - Cynegetica, sustenta que um dos meios para capturar a pantera consiste em aspergir vinho nas proximidades do lugar onde ela bebe água. A Pantera não resiste ao vinho e se embriaga facilmente. Ébria, mênade, de fera predadora vira presa. A tradição remonta aos cultos dionisíacos - sabemos que a pantera é um animal dedicado a Dionísio, deus do vinho e das orgias.

Filostrato, na Vida de Apolônio de Tiana, narra que as panteras da Armênia procuravam a floresta da Panfília, rica em essências balsâmicas, sentindo-se atraídas por seu forte odor. A pantera tem uma curiosa preferência pela árvore de cânfora, tomando-a como morada. Não permite que ninguém se aproxime dela, o que nos mostra um lado sensível e cheio de zelos, do intrigante animal.

E detesta o cheiro de alho. A pantera, como uma mulher caprichosa, cultiva seus estranhos gostos. De fato, para Aristófanes a cortesã sedutora e perfumada (felina, portanto) é uma pantera. Na peça Lisistrata, o desejável corpo da mulher, enfeitada com belas vestes e perfumada, é um felino deste tipo. Marcel Detienne irá observar que a caça e o amor não são pólos antitéticos mas sim correlatos. Parece óbvio, mas a conhecida armadilha continua em pé - e saber da sua existência não contribui para que suas vítimas escapem.

O estratagema das panteras difere: seduz as cabras - animais indóceis – com seu perfume; as ovelhas, com a visão de sua pele, que as paralisa. Para as cabras existe um substrato impalpável e quimérico servindo como intermediário, à diferença das ovelhas, encantadas com a exibição do corpo fascinante. A cabra não deseja a pantera mas sim o que é anunciado pelo seu perfume, que ela talvez julgue como uma emanação da perfeição. As ovelhas são seres simples, e essa ingenuidade é persistente. As cabras são caprichosas, mas o capricho é uma qualidade fugaz. Por isso mesmo, a Pantera faz mais vítimas entre as ovelhas (DETIENNE).

Os macacos não são atraídos pela pantera por uma emboscada de caráter estético e perverso, como as ovelhas e as cabras, mas sim por um complexo sentimento que poderia definir-se como a alegria dos pequenos, das vítimas ante a morte do sedutor, do forte - também do assassino, do tirano (NIETZSCHE). Os símios, homenzinhos triviais e de pouco juízo, sempre em estado de ebulição e continuamente agitados pelo som da flauta pânica das aparências - celebram a morte do Fulgor, da mortal sedutora. É um regozijo cego e egoísta, abismal, pois acreditam que mataram quem é capaz de trucidá-los fingindo-se de morta. No seu tresloucado desassossego, não percebem também desta vez que o artifício é sempre o mesmo - estender-se, e que, no final, aquela que se dá arrancará a máscara e voltará a espalhar a destruição.

Corre a lenda que as panteras, apesar de ferozes com o resto dos animais, são entre si seres bastante sociáveis e cordiais. Defendem seus filhos e se comportam decentemente com seus amigos, seja na sorte ou no infortúnio. Eliano conta que um caçador tinha em sua casa uma pantera mansa e um cabrito que haviam se tornado bons amigos. O cabrito morreu e o caçador lançou-o como alimento para a pantera, mas esta, reconhecendo o amigo, recusou-se a comê-lo, mantendo a mesma atitude durante vários dias, no que pesasse a sua fome. Finalmente o caçador lhe apresentou outro cabrito, que ela devorou sem demora. As panteras são atrevidas e ferozes, mas não alardeiam sua força e violência, ao contrário: freqüentemente oferecem um aspecto exterior tranqüilo, apresentando-se suavemente, com discrição.

Todos estes dados nos levam a pensar: mas será verdade? A pantera realmente tem um odor perfumado? Zoólogos dizem que não - a pantera não apresenta nenhum perfume especial a não ser aquele que emana de todo e qualquer felino saudável e bem tratado, incluindo aí os gatos. Que o inebriante perfume das panteras não passa de lenda. Mas cá entre nós, isso importa? O que temos aí são metáforas. E metáforas são verdades do espírito. A Sedução representa o domínio do universo simbólico, diz Baudrillard.

Envolta em um halo perfumado, exibindo o luxo de sua pele sedosa e atraente, sedenta por vinho, zelosa para com sua árvore de cânfora, a pantera ondula em seu passo elástico por um universo de delícias e crueldades. Uma aristocrata do espírito e dos sentidos.

Bela. Feiticeira. Sedutora. E solitária.


Zoe de Camaris


BIBLIOGRAFIA

O artigo foi composto tendo como referências o livro Da Sedução, de Jean Baudrillard; uma apreciação crítica da mesma obra, feita por Cristóbal Holzapfel da Universidade do Chile; antigos bestiários, entre eles o de F. Cardini - Monstros, feras, animais no imaginário medieval; o estudo Arqueologia das Trevas de Matteo Meschiari, e um texto que encontrei na Internet. Não consegui entrar em contato com os responsáveis pelo site e o texto disponível na web não se encontra assinado e nem dá maiores pistas sobre o autor. Acredito ser uma tradução para o espanhol de algum dos livros de Marcel Detienne, se não me falha o faro e as vibrissas. Os últimos trechos do item "Pantera", em que se discorre sobre as relações similaridade
entre humano e animal, são resenhas do texto em questão.


6 comentários:

Ivan disse...

Linda mistura de erudição com linguagem leve: assim eu fico bestificado, zoey.
*sai devagar com as quatro patas hesitantes*

Zoe de Camaris disse...

Volte, volte !!!

Anônimo disse...

...uau

Anônimo disse...

oie
gostei muito do texto bem informativo
andei sonhando com pantera e agora sei oque quer dizer
beijos

Mirna disse...

A melhor estratégia para conquistar um homem é sedução. Por que você tem que escolher a roupa, a forma como eles se movem, andar, falar e gestos usados. Mas o que eu nunca pode faltar um perfume sedutor. Um perfume sedutor enlouquece os homens.

tavinho paes disse...

... o tapa da pantera pode ser fatal; o olhar hipnótico também,mas esta coisa do hálito perfumado é algo impressionante ... é real e está em extinção ... é lindo o felino negro com nome de mulher, igual a onça ... o beijo eve ser melhor do que o tapa ...mas é igual homem-bomba: só experimenta uma vez!!! Gostei dese texto!