segunda-feira, julho 12, 2004

Sangue de Pantera (1942)

But black sin hath betrayed to endless night
My world, both parts, and both parts must die.


Holy Sonnets V - John Donne



Para quem não sabe, o filme Cat People (1982), de Paul Schrader, que no Brasil recebeu o nome de “A Marca da Pantera”, é um remake do filme “Sangue de Pantera”, B-movie de 1942. É o primeiro filme de Jacques Tourneur produzido por Val Lewton - uma obra prima do suspense, marca do cinema noir.

O roteiro de DeWitt Bodeen é muito diferente do filme estrelado por Natassia Kinski e Malcolm McDowell nos anos 80. No filme de 1942, a trama acontece sem a presença do irmão e sem a sombra do incesto. As diferenças não param por aí, já que em Sangue de Pantera (o título original é o mesmo, Cat People), os efeitos especiais são criados em jogos de luz e sombra que mais sugerem do que mostram. A transformação de Irena em pantera é insinuada, metaforizada. O diretor quase abandonou o filme pela metade quando a direção da RKO insistiu que uma pantera verdadeira aparecesse em duas cenas, no lugar da atriz. Tourneur também se mostra um expert no uso do som, sabendo criar com maestria a atmosfera de suspense. A tensão é crescente em cenas longas e sem cortes; os diretores lidavam com orçamentos escassos e o que valia mesmo era a criatividade e não os efeitos mirabolantes dos filmes de terror atuais - o público padrão mudou e já não tem paciência para sutilezas (será?)

Em Sangue de Pantera, Irena (Simone Simon) é uma emigrante dos Balcãs que se casa com Oliver (Kent Smith), um arquiteto de Nova Iorque. O fundo mítico é a lenda sérvia das mulheres-pantera que, ao se relacionarem sexualmente, se transformam em felinas e matam o parceiro. As mulheres-gato são descendentes das bruxas executadas pelo Rei João da Sérvia na época medieval. O pai de Irena teria sido morto pela esposa-pantera, depois da transa.
Se Irena despertar a fera...

O marido, inconformado pela não-consumação do casamento, leva a esposa para consultar um psiquiatra. O analista é rendido pelo poder de sedução de Irena. Simone Simon foi bastante elogiada pela crítica, seus maneios sensuais e até agressivos diferenciam-se bastante do clima clean da atuação da gatíssima Natassia Kinski na versão de 82. Natassia não imprime o aspecto de voluptuosidade à sua personagem, ao contrário - parece estar sempre relutante e assustada com a sua estranha condição e triste destino. Enquanto Irena-Simone tem maneirismos felinos respaldados pelas inúmeras imagens de gatos e panteras que surgem durante o filme, Irena-Natassia escorrega de forma mais sutil. Exceção feita ao ciúme, quando entra em jogo. Emoções fortes, pelo jeito, também podem transformar mulheres em panteras e nesse momento, as duas personagens, de 1942 e 1982 (exatos quarenta anos separam um filme do outro), têm atitudes bastante parecidas. Enquanto Irena-Simone conta para o psiquiatra os seus tormentos, Oliver estreita relações de maior cumplicidade com uma colega de trabalho, Alicia (Jane Randolph) que será perseguida por Irena em uma das passagens que consagrou o filme, a cena da piscina. Irena-Natassia também não deixa barato – a rival dança bonito.

Sangue de Pantera é uma história em que coloca em cheque o adultério com uma abordagem que, na década de 40, mereceu os aplausos das feministas. Não raro, o papel de “monstro” ou de “salvador” era reservado ao homem - à mulher cabia o papel de vítima. Nesse caso, a figura feminina é quem causa temor e a energia de Irena-Simone durante o filme é espetacular. Isso não acontece em Cat People de Paul Schrader (1982) em que o irmão de Irena, representado por Malcolm McDowell, ganha o papel “principal” - pelo menos em termos de força de ataque, pois assim que o desejo aparece, o homem-pantera sai e mata. Ele é o vilão da trama, personagem principal (o trabalho de corpo do futuro Calígula é perfeito). Na versão de Tourneur, Irena-Simone mantém sob controle dois homens, o marido e o psiquiatra. E não entrega seu destino nas mãos de homem algum como faz a personagem de Schrader. A mulher-pantera de Tourneur em nenhum momento é enjaulada, mesmo que seu fim não seja nenhum manjar de coco.

Bem, não vou contar a história porque não sou desmancha prazeres e esse filme, imperdível, não é conhecido como o Cat People dos anos oitenta. Sangue de Pantera acabou de ser lançado em DVD e traz no vácuo uma outra raridade: o filme The Curse of the Cat People (1944) A Maldição da Pantera, mais uma produção de Val Lewton. A RKO, tentando aproveitar o sucesso anterior, conservou os mesmo atores e personagens. No entanto, o universo ficcional é completamente outro. O filme gira em torno das dificuldades e traumas de uma criança e não se refere a nenhuma pantera: o casal formado por Oliver e Alicia tem uma filha que vê o fantasma da primeira esposa do pai.

Há quatro anos foi anunciado que Will Smith iria produzir um remake do clássico dos anos 40 ambientado nos anos 90, em Nova Iorque. O que nos dá a certeza que o tema da mulher-pantera continua fascinando gerações. Dá pra entender.

Zoe de Camaris

2 comentários:

Anônimo disse...

Este filme será exibido no Instituto de Artes Paraense e depois de ler o que você escreveu, não vou perder!!!
Laís,31
Belém, Pa

Professor Daniel Ximenes disse...

També tem uma informação que talvez você não saiba - Há também o LIVRO, muito vendido nas lojas americanas por R$ 19,99 há quatro anos atrás (mas ainda há na internet pra vender), sob o mesmo título em inglês, mas em português ficou como "A Marca do Felino", que eu tenho, por sinal, e que trata do mesmo tema, na mesma cidade (New Orleans), mas com personagens diferentes. A autora é Valerie Martin.
Este romance mostra a vida de três mulheres que se entrelaçam em histórias sobre o mesmo tema universal: o divórcio entre o homem e o resto da natureza, a psicologia humana versus o mundo ao seu redor, a selvageria do moderno em confronto com o espírito, a volta ao mito do bom selvagem que separa o homem domesticado do homem livre, aproximando-o do mundo natural.
Ellen é veterinária do zôo de Nova Orleans. Cientista dedicada, custa a acreditar que o equilíbrio de seu casamento de 20 anos está ameaçado. Seu marido, Paul, um homem instável, sempre em busca de aventuras e uma vida de liberdade, apaixona-se por outra. O mundo ‘domesticado’ de Ellen desaba com o divórcio.
Paul é historiador ocupado com um livro sobre a vida de Elizabeth Boyer. Conhecida como a ‘mulher gato’, ela foi enforcada em 1846 por ter assassinado o marido tirano e cruel. Única mulher branca executada na Louisiana no século passado, Elizabeth é o tema em background do exemplo da mulher que põe fim a uma vida de dominação, repressão e opressão. Valerie Martin compara a personalidade da ‘mulher gato’ à de um leopardo negro e livre e faz um contraponto com o espírito aprisionado dos bichos e a liberdade da selva.
No presente está Camille, a tratadora de grandes felinos do zôo. Jovem de 19 anos, pobre e desajustada, ela vive em profunda solidão, acreditando não ter lugar na sociedade nem chances para uma vida feliz. Igualmente cativa da selvageria do mundo moderno, Camille tem visões de poder e transformações, acreditando que incorpora as características de Magda, o leopardo negro do zôo.
Em A marca do felino Valerie Martin não só discorre sobre a fragilidade do equilíbrio – humano e da natureza – como aborda um tema que mexe com todos que se preocupam com as estratégias de sobrevivência e transformações naturais ao longo do tempo. No ar fica a pergunta: será que a única maneira de salvar o mundo é desistir de tudo o que faz a vida valer a pena?
A marca do felino é uma evocação criativa do filme de 1942, que o diretor Paul Schrader refilmou com o título A marca da pantera.