domingo, dezembro 19, 2004



Yara, Fascínio de Sereia


Meu valente apigáua!
Vem habitar comigo a mesma taba
Dormir na mesma tépida quiçáua!
Sou a mãi d'água te farei puranga
Tens nos meus olhos a melhor puçanga

Yara
Acrísio Mota – 1898


Metade mulher, metade monstro - sinônimo de sedução e perigo, de beleza sobrenatural. Da sedução que supera a sexualidade, se concordarmos com Jean Baudrillard.

Lendas que contam tragédias de amor, como o de Loreley do Reno; histórias de mulheres violadas que se voltam contra os que causaram sua dor e humilhação. Espíritos de moças afogadas que após a metamorfose tornam-se impiedosas devoradoras de carne humana.

No Canto XII da Odisséia, a feiticeira Circe avisa Ulisses que as Sereias moram em um prado, junto a um grande monte de ossos de homens em putrefação. Sereias são seres de cemitério, é bom lembrar. Ovídio irá caracterizá-as à imagem de pássaros de plumas avermelhadas com rosto de mulher. Segundo J. L. Borges, a música das sereias é uma arma letal e sua lei é morrer quando alguém não se deixa seduzir pelos seus encantos. Orfeu, o mítico poeta e músico grego, em busca do Velocino de Ouro com os Argonautas, cantou com maior doçura tangendo sua lira e elas, desesperadas, atiraram-se ao mar, transformando-se em rochas.

Franz Kafka no O Silêncio das Sereias diz que elas possuem uma arma maior do que o seu canto - o silêncio. A cera colocada no ouvido, como fizeram os companheiros de Ulisses, seria insuficiente para conter tal poder de sedução. Ulisses não teria ouvido o seu silêncio. Será?

Dizem que a sereia nunca é possuída a não ser que este seja o seu desejo - questão paradoxal depois da leitura de alguns mitos, como veremos adiante. As Rusalki (ou russalkas), sereias russas e eslavas, são terrivelmente vingativas. Se uma irmã é pega, o destino do caçador está traçado: morrerá dilacerado. Sereias são gregárias, amam a sua espécie.

São chamadas de Spunkies na Escócia, de Groachs na Bretanha, de Gwaragedd em Gales, de Ninguyo no Japão, de Zavas na Polônia, de Mouras Encantadas em Portugal, de Mães d'Água na África.

É Dagon e Partênope, Lígia e Leucósia, Teodora e Murgen.

E no Brasil, a sereia se chama Yara. Diz a lenda (1) :

"Yara, a jovem Tupi, era a mais formosa mulher das tribos que habitavam ao longo do rio Amazonas. Por sua doçura, todos os animais e as plantas a amavam. Mantinha-se, entretanto, indiferente aos muitos admiradores da tribo. Numa tarde de verão, mesmo após o Sol se pôr, Yara permanecia no banho, quando foi surpreendida por um grupo de homens estranhos. Sem condições de fugir, a jovem foi agarrada e amordaçada. Acabou por desmaiar, sendo, mesmo assim, violentada e atirada ao rio. O espírito das águas transformou o corpo de Yara num ser duplo. Continuaria humana da cintura para cima, tornando-se peixe no restante. Yara passou a ser uma sereia, cujo canto atrai os homens de maneira irresistível. Ao verem a linda criatura, eles se aproximam dela, que os abraça e os arrasta às profundezas, de onde nunca mais voltarão."

Essa história mostra uma face até então desconhecida da lenda, que sempre apresenta a Yara como um encantado aquático, pouco se falando, no Brasil, sobre uma possível origem humana e de seus sofrimentos. Normalmente, é retratada como uma mulher de cabelos muito longos, sobrenaturalmente verdes ou de um louro dourado, que usa um pente de ouro e carrega os homens para o fundo do rio.

A Sereia violentada comparece também em um poema-fábula de Pablo Neruda:


Fabula de la sirena y los borrachos


TODOS estos señores estaban dentro
cuando ella entró completamente desnuda
ellos habían bebido y comenzaron a escupirla
ella no entendía nada recién salía del río
era una sirena que se había extraviado
los insultos corrían sobre su carne lisa
la inmundicia cubrió sus pechos de oro
ella no sabía llorar por eso no lloraba
no sabía vestirse por eso no se vestía
la tatuaron con cigarrillos y con corchos quemados
y reían hasta caer al suelo de la taberna
ella no hablaba porque no sabía hablar
sus ojos eran color de amor distante
sus brazos construidos de topacios gemelos
sus labios se cortaron en la luz del coral
y de pronto salió por esa puerta
apenas entró al río quedó limpia
relució como una piedra blanca en la lluvia
y sin mirar atrás nadó de nuevo
nadó hacia nunca más hacia morir.

*

Arriscando uma interpretação, me parece que a sereia sempre traz no peito uma dor de amor - não raro é vítima de alguma injustiça. E pelo jeito, nem em terras tupiniquins escapou da tristeza e de uma inegável melancolia, raiz do seu instinto vingativo. A falta de uma contraparte masculina e a sua não-compleitude como mulher fazem parte da sua natureza de modo indistinto, causando devastação por onde quer que encante.

A lenda da Yara é um amálgama de mitos das mais diversas procedências, mitos estes que encontraram um fértil terreno no Brasil, terra de Cy’s’ aquáticas, de serpentes primevas, dos terríveis ipupyraras - seus parentes nativos.

Os ipupyaras são monstros da água, normalmente citados como seres masculinos. Pelo menos é o que encontramos em Osvaldo Orico, Câmara Cascudo, Teodoro Sampaio e outros medalhões do nosso folclore. Talvez o primeiro registro dos ipupyaras tenha sido feito por José de Anchieta: "Há também nos rios outros fantasmas, que chamam de Igputiara, isto é, que moram n'água, que matam do mesmo modo os índios".

Podemos encontrar outros subsídios sobre os ipupyaras no livro de Afonso de Escragnolle Taunay, "Zoologia Fantástica do Brasil". Nele temos um dos registros dos homens-aquáticos, citado pelo jesuíta Fernão Cardim (2).

"Estes homens marinhos se chamam na língua Igpupiara; têm-lhe os naturais tão grande medo que só de cuidarem nele morrem muitos, e nenhum que o vê escapa; alguns morreram já e perguntando-lhes a causa, diziam que tinham visto este monstro; parecem-se com homens propriamente de boa estatura, mas têm os olhos muito encovados. As fêmeas parecem mulheres, têm cabelos compridos, e são formosas; acham-se estes monstros nas barras dos rios doces. Em Jagoarigipe sete ou oito léguas da Bahia se têm achado muito; no ano de oitenta e dois indo um Índio pescar, foi perseguido de um, e acolhendo-se em sua jangada o contou ao senhor; o senhor para animar o Índio quer ir ver o monstro, e estando descuidado com uma mão fora da canoa, pegou dele, e o levou sem mais parecer, e no mesmo ano morreu outro Índio de Francisco Lourenço Caiero. Em Porto Seguro se vêem alguns, e já têm morto alguns Índios. O modo que têm para matar é: abraçam-se com a pessoa tão fortemente beijando-a e apertando-a consigo que a deixam feita toda em pedaços, ficando inteira, e como a sentem morta, dão alguns gemidos como de sentimento e, largando-a, fogem; e se levam alguns comem-lhe somente os olhos, narizes e a ponta dos dedos dos pés e das mãos, e as genitálias, e assim os acham de ordinário pelas praias com estas coisas menos."

É interessante que os jesuítas e viajantes dão notícias da existência dessas figuras rodeando-lhes de uma aura de 'verdade', ou seja, como se fosse um fato incontestável. E podemos notar também o registro, em 1583, que ressalta os ipupyaras femininos. Ou seja, depois de 1500, o que a crônica colonial traz de mais puramente indígena, no que concerne a monstros ou deidades da água, são os ipupyaras.

Taunay, ao sintetizar o 'crème de la crème' da Zoologia Fantástica na crônica colonial, relata que os ipupyaras eram bastante aproximados ao peixe-boi, ou ainda, a uma espécie de leão marinho. Existe a Cy (Mãe) do Peixe Boi, a Xundaráua, uma espécie de madrinha da pesca. Xundaráua faz com que os pescadores não voltem do rio sem trazer um daqueles cobiçados mamíferos. Exige, porém, que não se mate o primeiro que surja e nunca mais de um animal. Quem violar a regra nunca mais terá êxito nas suas empresas. Esse dado denota que existe algum tipo de culto ("culto" à maneira indígena, é bom frisar) ao Peixe Boi.

E o mito da Cobra Grande? É Rainha dos encantados no ciclo fluviônico (ictiológico ou aquático) indígena. As lendas aquáticas originaram-se do ctonismo silvícola e sua idéia fundamental repousa na idéia de um ser feminino (andrógino, talvez) corporificado na água. Um dos melhores exemplos é a Lenda do Nascimento da Noite. A melhor versão, e também a menos simplificada, é dada por Adaucto Fernandes, em que a Cobra Grande é relacionada a uma deidade feminina da água, Amana.

Vejamos o mito da Cobra Grande, original do Rio Branco:

"Uma das lendas da Boiúna, conta que uma linda cunhã, de grandes e vibrantes olhos negros, costumava andar na sua canoa pelo Rio Branco. Ela encantava a todos com a sua beleza e do seu corpo emanavam raios luminosos que se transformavam em música e atraiam os peixes. Por isso, acreditavam os pescadores que, quando ela singrava pelas águas, a pesca seria farta. Suspenso no seu colo estava sempre o Muirakitã, seu amuleto sagrado. Um dia, o Rio Branco, já tomado de amores pela jovem, também começou a emitir raios luminosos. E pelo efeito mágico do Muirakitã os raios de luz da cunhã e as emanações do rio cruzaram-se, o que transformou a moça em uma enorme cobra, a Boiúna. Nas noites de lua cheia a guardiã do Rio aparece e traz muitos peixes para que os habitantes ribeirinhos possam alimentar-se. Agora, se alguém aparece para depredar o rio a Boiúna vira as embarcações, matando seus barqueiros".

A imensa massa fluvial brasileira, país que acolhe o maior rio do mundo, não poderia deixar de ter suas Mães d'Água. É uma pena que nossos povos indígenas, ágrafos, não tenham registrado histórias de sereias a não ser nos relatos orais ou nas peças de cerâmica. Dependemos dos primeiros cronistas, sempre a registrar os mitos com filtro etnocêntrico. Felizmente, temos os registros arqueológicos que, embora pequem pela aridez, nos oferecem ao menos dados etnográficos confiáveis.

A Cobra Grande é a principal raiz dos mitos aquáticos. Temos, além do maior rio do mundo, uma das maiores cobras, a anaconda ou sucuriju, correlato real da Cobra Grande – maior que a sucuriju só mesmo a píton africana. Ganhamos do Egito no tamanho do rio.

Continuando com as cobras, um resumo do o mito de Tuluperê (3):

"Sendo o animal que mais se aproxima do simbolismo cíclico do vegetal, a cobra encontra uma relação com os produtos da tecedura e da fiação. No Brasil, a representante é Tuluperê, outra das faces da Cobra Grande. Tuluperê, segundo nos conta a Lenda da Cestaria, vivia nas profundezas do Rio Paru, um afluente do Amazonas. Suas cores eram o vermelho e o negro, sendo como um híbrido da sucuriju e da jibóia. A cobra virava os barcos e quando atracava alguma vítima, apartava-a até a morte e então, a devorava. Certo dia, o pajé da tribo dos Wayana, do tronco Karib, conseguiu matar a flechadas Tuluperê e guardaram na memória os desenhos que ornamentavam a sua pele. Daí por diante, passaram a reproduzir esses grafismos em suas cestas".

Tendo permanecido na arte da cestaria, o mito de Tuluperê é revivido: mito e ritual.

Temos também no nosso repertório as mulheres míticas, algumas delas transformadas em deidades da água ou ainda originárias do ambiente aquático como Amana (Karib); Maïsö (Paresi); Naoretá (Tupari); Katxuréu (Macurap) Iururaruaçú (Uaiás) e Hanekasá (Yanomami-Sanema).

Das deidades acima citadas, não é possível afirmar que persistam cultos e ritos. Mas existem uma, em especial, que faz parte de toda uma ritualística indígena: Tauvyma, personagem mítico feminino dos Asuriní do Xingu, um espírito das águas que um dia foi mulher. Sua presença nas águas é chamada de Tauva e faz parte de um extenso corpo de rituais.

Ainda dentro do aspecto ritualístico temos as divindades aquáticas invocadas pelos xamãs Kaapor, chamadas de Irïwär, que se acredita ajudarem os xamãs a predizer o futuro, a restaurar suprimentos de caça esgotados e a diagnosticar e curar doenças. O xamanismo envolve uma performance pública, assistida por habitantes da aldeia de todas as idades. Os xamãs Ka'apor afirmam ter sido chamados espiritualmente para esta ocupação quando arremessados em um córrego pela Mãe d´Água.

A nossa Yara, a sereia brasileira, é cria híbrida de muitas lendas assim como o nosso povo é fruto de várias etnias. Mas também é, sem dúvida alguma, uma sobrevivência do imaginário dos povos indígenas, das mais variadas tribos.

A imaginação se alimenta de sereias nas serenas madrugadas. E a história continua, mostrando toda a vitalidade de um dos mais persistentes mitos da humanidade.


Em Cy,
Zoe de Camaris



1- http://www.estadao.com.br/villasboas/yara.htm
LENDAS INDÍGENAS - Texto adaptado do livro Lendas e Mitos dos Índios Brasileiros
FTD Editora - Walde-Mar de Andrade e Silva

2 - TAUNAY, Afonso de Escragnolle. Zoologia Fantástica do Brasil. São Paulo: Edusp. p.102,103

3 - ver em VELTHEM, Lúcia Hussak van. A Pele de Tuluperê: uma etnografia dos
trançados Wayana. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, Coleção Eduardo
Galvão, 1998, 251p.

4 - MÜLLER, Regina Polo. Os Asuriní do Xingu: história e arte. Campinas: Editora
da Unicamp, 1990.



Um comentário:

Cristiano Coutinho da Cruz disse...

Muito obrigado pelas informações! Parabéns pelo texto!