domingo, janeiro 29, 2006


PARTITURA


Retrato de Sonia Klamery (1913)
Hermenegildo Anglada Camarasa


Perplexidade, raios de um sol
que redesenha seu centro;
essa matéria tão delicada,
ferozes epitélios da flor;
deslizando das pupilas,
revoluta, para outro mar,
após tingir o flanco da noite.
Fosse apenas o perambular
em outra relva, seria tema
de chanson; dissociada de mim,
reclinada em lua minguante,
seria musa de retrato fauvista,
excedendo o rubro tigrino.
De todo modo, um dia vou
felinizá-la em partitura.


Claudio Daniel

quarta-feira, janeiro 11, 2006

SIM


leon/ xul solar


Chove, faz sol

sopro as unhas
esperando o vento

tece a aranha
mais um fio
os papéis amassados

dentro, são tênues
os reflexos

a seiva lilás do tronco
escorre granada ao meio dia

nada mais acontece

o menino da vizinha
solta um grito gelado
o alfaiate reclama

ah, se diferente fosse

a aranha tece o invisível
o vento amanhece


amanhã
amanhã não direi
basta para os vinte dois estertores

nem arrancarei a pele
na melodia do tempo


Zoe

domingo, janeiro 08, 2006



se deuses não existem
pã está morto
e o mesmo o grande deus agoniza,

alguém, por amor à ciência
- e em sã consciência - pode me explicar
o que apolo veio fazer aqui
depois que honrei sua irmã?


Zoe

quinta-feira, janeiro 05, 2006




um tigre
quando se entigra
não é flor
que se cheire
não é tigre
que se queira

ser tigre
dura a vida inteira


P. Leminski
O TIGRE




Há um tigre em casa
que dilacera por dentro aquele que o olha.
E somente tem garras para aquele que o espia,
e somente pode ferir por dentro,
e é enorme:
maior e mais pesado
que outros gatos gordos
e carniceiros pestíferos
de sua espécie,
e perde a cabeça com facilidade,
fareja o sangue mesmo através do vidro,
percebe o medo até da cozinha
e apesar das portas mais robustas.

Costuma crescer de noite:
coloca sua cabeça de tiranossauro
em uma cama
e o focinho fica pendurado
para lá das colchas.
Seu dorso, então, se aperta no corredor
de uma parede à outra,
e somente alcanço o banheiro rastejando, contra o teto,
como que através de um túnel
de lodo e mel.

Não olho nunca a colméia solar,
os negros favos do crime
de seus olhos,
os crisóis da saliva envenenada
de suas presas.

Nem sequer o cheiro,
para que não me mate.

Mas sei claramente
que há um imenso tigre encerrado
em tudo isso.


Eduardo Lizalde
Tradução: Plinio Junqueira Smith
A MARCA DE UMA MORDIDA em lugar algum.





Também a ela
tens de combater,
a partir daqui.



Paul Celan
in Sóis em Fios
Trad Claudia Cavalcanti