terça-feira, julho 20, 2004

ALGO MAIS SOBRE A ESPUMA



Escrito em nenhuma parte



A espuma é pó bruma névoa água.

A espuma é esse sonho, a lembrança nebulosa do sonho que não estou seguro de haver sonhado.

A espuma é borra, a espuma pastosa do banquete que me cresce na boca, essa coisa que fica do tempo é a espuma.

É, indubitavelmente, espuma, a honra, a glória, os sobrenomes ilustres, o céu azul, sua intensidade: espuma celestial.

O céu e as nuvens, todas as formas conhecidas de nuvens e ainda aquelas nuvens viventes que se elevam com os campos, as nuvens de gafanhotos, digo: e as nuvens coloridas com as quais Kurosawa ilustrava a morte e as nuvens terríveis, a de Chernobyl, por exemplo; e ainda as nuvens vulcânicas que viajam milhões de quilômetros na garupa do vento para cair sobre o teto do meu carro, grudentas; e ainda o vento tão transparente e a transparência em si, a dos vendavais.

A espuma de teu ventre que se descola entre os lábios de tua vulva acendendo desejo, o fogo incompreensível do peito, o fogo que incendeia os bosques e ainda a espuma, a espuma artificial dos detergentes.

A espuma da boca da mulher de quem bebo as águas essenciais.

A espuma, não é uma coisa espumosa precisamente senão o rastro invisível do vôo do pássaro e a que se vai secando no alto pouco depois do passo de um jato.

A espuma é essa coisa tóxica preta que os ônibus nos jogam na cara, espuma demencial.

O pequeno vale entre dois morros está sempre completamente cheio de espuma que o tempo faz rodar pelas ladeiras.

Sem dúvida uma árvore, um pássaro, um beijo, estão compostos em forma primordial de espuma.

É o que fica de mim quando me vou, eu te digo porque sempre estou indo, é só espuma, minha espuma.

A lã das ovelhas, a que cresce no corpo e a que lhes foi cortada, o de dentro e o de fora, as plumas dos gansos, o pelo do gato que pela casa flutua na porção de ar que o sol nos mostra entrando pela ventarola.

Os cheiros do zoológico, que são o fora do de dentro sujo das feras.

A jaqueta brilhante do domador de feras.

A seda gasta dessa jaqueta.

O instante em que saltam os jogadores de futebol, todos ao mesmo tempo, pretendendo alcançar a bola com suas cabeças.

Um pequeno grupo de árvores encostadas por medo de estarem assim sozinhas no meio da planicie.

As cercas de arame para que o gado não escape, as eletrificadas.

As que separam e as que unem.

As cercas de arame que formam losangos quase idênticos e terminam acima com várias linhas oblíquas de mais farpas, não são acaso a espuma do temor.

A borracha dos pneus que gruda na calçada para sempre.

Além da espuma que o mar nos derrama constantemente, tão bela na distância quando alcança o êxtase em cima da onda, tão pobre e ruim e grudenta sobre a areia suja da praia.

Além dessa espuma está a espuma de que se compõe o pâncreas, para mencionar algumas de minhas vísceras menos queridas, e a fétida espuma dos dejetos que levamos dentro e o perfume das frutas que apodrecem embaixo da figueira e os mesmos figos caídos quando os arranco e lhes devoro o coração rosado e os fungos de cores que infectam a ferida e os brancos fungos que comem a árvore e a fina serragem que os cupins deixam cair em sua delirante festa de madeira.

A espuma é isto que me afoga e outra vez me pergunto: se não é espuma, de que outra coisa somos feitos?


Jorge Montesino

(tradução - Zoe de Camaris)

Nenhum comentário: