terça-feira, agosto 30, 2005

O Êxtase
John Donne



Onde, qual almofada sôbre o leito,
A areia grávida inchou para apoiar
A inclinada cabeça da violeta,
Nós nos sentamos, olhar contra olhar.

Nossas mãos duramente cimentadas
No firme bálsamo que delas vem,
Nossas vistas trançadas e tecendo
Os olhos em um duplo filamento;

Enxertar mão em mão é até agora
Nossa única forma de atadura
E modelar nos olhos as figuras
A nossa única propagação.

Como entre dois exércitos iguais,
Na incerteza, o Acaso se suspende,
Nossas almas (dos corpos apartadas
Por antecipação) entre ambos pendem.

E enquanto alma com alma negocia,
Estátuas sepulcrais ali quedamos
Todo o dia na mesma posição,
Sem mínima palavra, todo o dia.

Se alguém - pelo amor tão refinado
Que entendesse das almas a linguagem,
E por virtude desse amor tornado
Só pensamento - a elas se chegasse,

Pudera (sem saber que alma falava
Pois ambas eram uma só palavras),
Nova sublimação tomar do instante
E retornar mais puro do que antes.

Nosso Êxtase - dizemos - nos dá nexo
E nos mostra do amor o objetivo,
Vemos agora que não foi o sexo,
Vemos que não soubemos o motivo.

Mas que assim como as almas são misturas
Ignoradas, o amor reamalgama
A misturada alma de quem ama,
Compondo duas numa e uma em duas.

Transplanta a violeta solitária:
A força, a cor, a forma, tudo o que era
Até aqui degenerado e raro
Ora se multiplica e regenera.

Pois quando o amor assim uma na outra
Interanimou duas almas,
A alma melhor que dessas duas brota
A magra solidão derrota,

E nós que somos essa alma jovem,
Nossa composição já conhecemos
Por isto: os átomos de que nascemos
São almas que não mais se movem.

Mas que distância e distração as nossas!
Aos corpos não convém fazermos guerra:
Não sendo nós, não convém fazermos guerra:
Inteligências, eles as esferas.

Ao contrário, devemos ser-lhes gratas
Por nos (a nós) haverem atraído,
Emprestando-nos forças e sentidos.
Escória, não, mas liga que nos ata.

A influência dos céus em nós atua
Só depois de se ter impresso no ar.
Também é lei de amor que alma não flua
Em alma sem os corpos transpassar.

Como o sangue trabalha para dar
Espíritos, que às almas são conformes,
Pois tais dedos carecem de apertar
Esse invisível nó que nos faz homens,

Assim as almas dos amantes devem
Descer às afeições e às faculdades
Que os sentidos atingem e percebem,
Senão um Príncipe jaz aprisionado.

Aos corpos, finalmente, retornemos,
Descortinando o amor a toda a gente;
Os mistérios do amor, a alma os sente,
Porém o corpo é as páginas que lemos.

Se alguém - amante como nós - tiver
Esse diálogo a um ouvido a ambos,
Que observe ainda e não verá qualquer
Mudança quando aos corpos nos mudamos.


Tradução de Augusto de Campos

segunda-feira, agosto 29, 2005

Meditaçao de Agrigento

















Quem nos domara a força vã,
quem nos sufocara o instinto
Para permanecermos
Em conformidade à linha do céu,
A estas colunas perenes,
Ao oculto mar lá embaixo.
Quem nos transformara em folha
Ou no súbito lagarto
Que se esgueira sob tuas pedras,
Templo F, sereno templo F,
Arquitetura de reserva e paz.

Transformar-se ou não, eis o problema.
Durar na zona limite da memória,
Nos limbos da vontade,
Ou submeter a pedra, cumprir o ofício rude,
Aprender do lavrador e do soldado.

Qual a forma do poeta? Qual seu rito?
Qual sua arquitetura?

Mudo, entre capitéis e cactos
Subsiste o oráculo.
A manhã doura a pedra e vagos nomes,
Agrigento me contempla, e vou-me.


Murilo Mendes
Siciliana (1959)

quinta-feira, agosto 25, 2005




Check-In


Não me importa entrar pela porta arabescada
Do desespero
Descer
Inferno
Destempero
Desequilíbrio
Certas cordas sem rede de proteção
Fogo
Carvão
Súcubos
Exus
Sereias amaldiçoadas, super-heróis do avesso
Nada disso me assusta
Se tiver certeza de que na saída
Eu estarei do lado de fora esperando por mim.


Greta Benitez

sábado, agosto 20, 2005




Repouso


Basta o profundo ser
em que a rosa descansa.

Inúteis o perfume
e a cor: apenas signos
de uma presença oculta
inútil mesmo a forma
claro espelho da essência

inútil mesmo a rosa.

Basta o ser. O escuro
mistério vivo, poço
em que a lâmpada é pura
e humilde o esplendor
das mais cálidas flores.

Na rosa basta o ser:
nele tudo descansa.



Orides Fontela

quarta-feira, agosto 17, 2005

não há palavra


que cante
imagem que explique
lágrima que traduza

viola que chore
filósofo que entenda

não há flor que aflore
droga que expanda

perfume que seduza
beijo que amorne

não há sono que repare
água que permeie
sopro que perdure

seu sonho
meu medo

seu desejo
meu destino

seu amor
meu silêncio




ZdC/05

terça-feira, agosto 16, 2005


O poema de Plath é inspirado nesta pintura de Henri Rousseau
La Charmeuse de Serpents


ENCANTADORA DE SERPENTES


Como os deuses começaram um mundo, e o homem outro,
Assim a encantadora de serpentes começa uma esfera serpiforme
Com lua-olho, boca-flauta. Ela flauteia. Flauteia verde. Flauteia água.

Flauteia água verde até verdes águas tremularem
Com juncosas extensões e istmos e ondulações.
E ao se entrelaçarem verdes suas notas, o rio verde

Modela as próprias imagens em volta de suas canções.
Ela flauteia um lugar pra ficar de pé, mas sem pedras,
Sem piso: uma onda de tremeluzentes línguas de relva

Sustenta seu pé. Ela flauteia um mundo de serpentes,
De gingados e coleios, a partir do fundo serpienraizado
De sua mente. E agora nada a não ser serpentes

Está visível. As serpiescamas se tornaram
Folha, tornada pálpebra; serpicorpos, galho, busto
De árvore e humano. E de dentro dessa serpentidade

Ela comanda as contorções que fazem manifesta
Sua serpenteza e seu poder com melodias flexíveis
Saídas de sua flauta esguia. Deste ninho verde afora,

Como do umbigo do Éden afora, retorcem-se as filas
De gerações serpiformes: que haja serpentes!
E serpentes houve, há, haverá – até que bocejos

Consumam essa flautista e ela se canse da música
E flauteie o mundo de volta ao tecido simples
Da serpiurdidura, serpitrama. E flauteie o pano de serpentes

Até uma fusão de águas verdes, até que nenhuma serpente
Mostre a cabeça, e aquelas águas verdes de volta pra
Água, pro verde, pra nada semelhante a uma serpente.
E acondicione sua flauta, e empalpebre seu enluarado olhar.


Sylvia Plath

Versão brasileira: Ivan Justen Santana

segunda-feira, agosto 15, 2005

Tomorrow


Amanhã acordo tarde
Colho beija-folhas pela casa
Varro os coquinhos do inferno
Tomo meia garrafa de café

Não vou almoçar
Nem fazer a cama
Talvez passeie pelo outono
Que não passa do inverno

Abro as janelas
Fecho as portas
Escrevo um poema
Que não vou publicar

Procuro meus pedaços
Entre os vãos do terraço
Ou algo assim
Um pouco do mesmo jeito

Apago o quadro negro
Rezo pelo perpétuo
Socorro que ele vem
Edito uma mensagem

Lavo as xícaras as xícaras
Batendo umas nas outras
Feito os dentes à noite
Ora afiados, ora de gelo


Amanhã

Silêncio repetido
Que música é mantra



ZdC/05

terça-feira, agosto 02, 2005


Akira Komoto


PEDREIRA
paul auster



Nada mais que a canção disto. Como se
só o canto tivesse
nos trazido até este lugar.

Temos estado aqui, e nunca estivemos aqui.
Estivemos a caminho até o lugar onde começamos,
e estivemos perdidos.

Não há fronteiras
na luz. E a terra
não nos deixa palavra alguma
pra cantar. Pois o desmoronar da terra
sob os pés

é música em si, e caminhar entre estas pedras
é ouvir a gente mesmo
apenas.

Canto, logo, nada,

como se isso fosse o lugar
para onde não volto -

e se voltasse, descontava a minha vida
nessas pedras: esquecer
que um dia estive aqui. O mundo
me caminha

além do meu alcance.



Tradução de Rodrigo Garcia Lopes
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QUARRY


No more than the song of it. As if
the singing alone
had led us back to this place.

We have been here, and we have never been here.
We have been on the way to where we began,
and we have been lost.

There are no boundaries
in the light. And the earth
leaves no word for us
to sing. For the crumbling of the earth
underfoot

is a music in itself, and to walk among these stones
is to hear nothing
but ourselves.

I sing, therefore, of nothing,

as if it were the place
I do not return to -

and if I should return, then count out my life
in these stones: forget
I was ever here. The world
that walks inside me

is a world beyond reach.

Paul Auster
De Fragments from the Cold (1976-1977)