sexta-feira, setembro 29, 2006



SUMÁRIO ASTRAL

- fragmento inicial -


Em forma humana
e habitada pela linguagem
lanço os dados
e abro os livros.
Ninguém dança persuadido.
Os braços se erguem unicamente
para bater com as mãos,
não para traçar algum signo.
Observo os detalhes do fogo
pintado para parecer uma cara.
Todo mundo se pisa.
Descansam os frutos e não os comem.
As bandeiras são da cor do caos,
e a serpente é a senhora dos viventes.
O sal não evita que o mar apodreça,
nem as letras correspondem ao trabalho.
A prova é que o poder atua como único centro
e no mundo se produzem artifícios
que compactuam com todas as conclusões
(e gêneros de especulação)
que seria conveniente abandonarmos.
A força das rochas não pensa.
Escrevo signos e letras
em um couro de boi.
Traslado ao pensamento
a terra, o céu e a água
e lanço areia sobre um espelho
para observar desenhos imprevisíveis
ou para traçar uma letra.
Ano após ano,
esgaravato a terra com as unhas
para poder cortar a sombra
que me ultrapassa e penetra as raízes.


Joan Brossa
Tradução de Ronald Polito

( roubado do Pele de Lontra)

quinta-feira, setembro 21, 2006

COMO POSSO SER UMA BOA MENINA
COM AMIGUINHOS DESTE TIPO?





(clique no banner)


tirando o copo fora

já devia ter ido embora
mas em parte estou errado
porém, por outro lado
não vou agora
o sol nasce lindo nessa hora
mas é a lua que comemora

das duas, uma três por quatro
poesia é um parto
meu sono pesado me entrega
no meu sonho acordei numa adega


(Chico Cardoso, Edilson Del Grossi e Plínio Gonzaga)

terça-feira, setembro 19, 2006



A propósito de estrelas


Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas


Adília Lopes

segunda-feira, setembro 18, 2006




FIGOS (trecho)


A maneira correcta de comer um figo, em sociedade,
É parti-lo em quatro, segurando-o pelo pé,
E abri-lo, de modo a ficar uma flor de quatro pétalas, pétalas
pesadas, resplandecentes, rosadas, húmidas e cobertas de mel.

A seguir deitas fora a pele
Que fica mesmo como um cálice de quatro sépalas
Após teres tirado a flor com os lábios.

Mas a maneira mais comum
É metê-lo na boca pela fenda e comer a polpa de uma só
vez.
Todos os frutos têm o seu segredo.



D. H. Lawrence
Os animais evangélicos / Relógio d'água


p.s.: encontrei diversas versões deste poema. uma das traduções é de Herberto Helder, as outras não indicam o tradutor. Aí vai o trecho original, em inglês.


___________________

FIGS



The proper way to eat a fig, in society,
Is to split it in four, holding it by the stump,
And open it, so that it is a glittering, rosy, moist, honied, heavy-petalled four-petalled
_________________________ flower.


Then you throw away the skin
Which is just like a four-sepalled calyx,
After you have taken off the blossom, with your lips.


But the vulgar way
Is just to put your mouth to the crack, and take out the flesh in one bite.


Every fruit has its secret.


D.H. Lawrence

sexta-feira, setembro 15, 2006


Se os poetas fossem menos patetas


Se os poetas fossem menos patetas
E se fossem menos preguiçosos
Faziam toda gente feliz
Para poderem tratar em paz
Dos seus sofrimentos literários
Construíam casas amarelas
Com grandes jardins à frente
E árvores cheias de zaves
De mirliflautas e lizores
De melharufos e toutiverdes
De plumuchos e picapães
E pequenos corvos vermelhos
Que soubessem ler a sina
Havia grandes repuxos
Com luzes por dentro
Havia duzentos peixes
Desde o crusco ao ramussão
Da libela ao papamula
Da orfia ao rara curul
E da alvela ao canissão
Havia um ar novo
Perfumado do odor das folhas
Comia-se quando se quisesse
E trabalhava-se sem pressa
A construir escadarias
De formas antes nunca vistas
Com madeiras raiadas de lilás
Lisas como elas sob os dedos

Mas os poetas são uns patetas
Escrevem para começar
Em vez de se porem a trabalhar
E isso traz-lhes um remorso
Que conservam até à morte
Encantados de ter sofrido tanto
Dedicam-lhes grandes discursos
E são esquecidos num dia
Mas se trabalhassem mais
Só seriam esquecidos em dois



BÓRIS VIAN
Canções e Poemas
Ed. Assírio e Alvim
Lisboa/ Coleção Rei Lagarto

terça-feira, setembro 12, 2006



VIA



qual é este caminho que nos separa
através do qual eu retenho a mão do pensamento
uma flor está escrita ao final de cada dedo
e o final do caminho é uma flor que caminha contigo



tristan tzara
Tradução de Virna Teixeira

quarta-feira, setembro 06, 2006



VODU


Me espete aqui:

o poro da folha não é meu, mas eu sinto.

A reta da tinta não desalinha
o itinerário na palma da mão

(onde me perco, mais que na vida)

nem o rosto desse esforço
com olhos de contas e boca de feltro
é máscara rebelada do que fui ou fujo

de ser. Está livre de mim, o poema.
Eu, não, dele, de mim, do seu chumaço
e arame, do seu engenho e arte.

Me espeto aqui, se espete.



o ar das cidades
sérgio alcides

sexta-feira, setembro 01, 2006



ATLÂNTIDA


Tendo se decidido a ir
Para Atlântida
Você descobrira é claro
Que somente a Nau dos Insensatos
fará nesse ano a viagem,
Pois vendavais anormais
São previstos, e você
Deve portanto estar pronto
A comportar-se de maneira suficientemente absurda
A passar-se por Um dos Rapazes,
Parecendo pelo menos gostar
De aguardente, vaquejada e barulho.

Tendo tempestades, o que pode muito bem acontecer,
Feito você ancorar uma semana
Em algum velho porto
Da Jônia, então converse
Com os seus espirituosos eruditos, homens
Que provaram não ser possível
Existir lugar como Atlântida:
Aprenda a lógica, mas repare
Como a sutileza deles trai
A sua enormemente simples amargura;
E eles devem ensinar a você a maneira
De duvidar que você possa acreditar.

Se, mais tarde, faltar-lhe chão
Nos promontórios da Trácia
Onde com tochas pela noite inteira
Uma nua raça bárbara
Volteia alucinada ao som
De búzios e dissonantes surdos;
Nessa selvagem praia de pedra
Dispa-se e dance, pois
A não ser que você seja capaz
De se esquecer completamente
Da Atlântida, você
Jamais terminará a sua jornada.

E, alcançando chegar à alegre
Cartago ou Corinto, caia
Em sua infinita gandaia;
E se num bar uma putinha

Enquanto acaricia o seu cabelo, dissesse
“Isto é Atlântida, queridinho”
Ouça com atenção
A história da vida dela: A não ser que
Você agora já saiba de
Todos os refúgios que tentam
Falsificar Atlântida, como
Você poderá saber o que é verdadeiro?

Imaginando que você aproasse, finalmente
Perto da Atlântida, e começasse
A adentrar a sua terrível trilha
Através do mato esquálido e de geladas
Tundras onde logo se perdesse;
Se ao abandono então quedasse
Banido de todo lugar,
Pedra e neve, silêncio e ar,
Ó lembre-se do grande morto
E honre o destino que é você
Viajante e atormentado
Dialético e bizarro.

Cambaleie para trás em júbilo;
E mesmo então se, talvez
Ante a última passagem, você tombasse
Com toda a Atlântida
Brilhando, aos seus pés
Ainda assim você não poderia
Descer, você poderia no entanto orgulhar-se
Ao ter-lhe sido, pelo menos, permitido
Uma rápida espiada da Atlântida
Em uma visão poética:
Agradeça e quede-se em paz,
Tendo visto a sua salvação.

Todos os deusinhos domésticos
Põem-se em pranto, mas diga
Adeus então, e vá ao mar.
Adeus, queridos, adeus: possa
Hermes, padroeiro das estradas,
E os quatro anões Kabiri,
Proteger e servir a você sempre:
E possa o Ancião dos Dias
Prover para tudo o que você deva fazer
Sua mão invisível,
Fazendo pairar, querido, sobre você
A luz de Sua face.


W. H. Auden
Tradução de Carlos Figueiredo