terça-feira, outubro 31, 2006



Ícaro

Com que então pertenço aos céus?
Não fosse assim, por que é que os céus
Me olhariam assim com seu eterno olhar azul,
Me chamando, e à minha mente, mais alto,
Sempre mais alto, sempre mais acima,
Me chamando sempre para o máximo,
Para alturas que homem algum imagina?
Por que, estudado o equilíbrio
E o vôo planejado até a última minúcia,
Até não haver margem para o infortúnio,
Por que, até aí, deve a ânsia de subir
Ser associada à insânia?
Nada nesta terra vai me ver satisfeito;
Novidades do mundo, logo monótonas;
Algo me chama lá em cima, para cima,
Cada vez mais perto da faísca do sol.


trecho de Ícaro, por Yukio Mishima
tradução de Paulo Leminski
Sol & Aço/85

sábado, outubro 28, 2006



Versos de Amor



A um poeta erótico
Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a ... ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana.

Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!

Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.

Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, o observas.

Porque o amor, tal como eu o estou amando,
E Espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!

É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima, e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!

Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Marsias — o inventor da flauta —
Vou inventar também outro instrumento!

Mas de tal arte e espécie tal faze-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo!

Para que, enfim, chegando à última calma
Meu podre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
Como um saco vazio dentro d'alma!



Augusto dos Anjos
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quinta-feira, outubro 26, 2006

DA PRÓXIMA VEZ, BATA À CAMPAINHA




AS JANELAS SE ABRIAM


as janelas se abriam sobre uma erva de sonho
confundidas entre os cursos da água
no calor dos tijolos selvagens
encharcavam no vinho
os espessos triunfos de poentes partidos
em breve a dor já não estará viva
e o último luar ceifará e sua emoção
e a dura amizade que uma mola em tensão
ligava à sua sombra – eu era apenas sua sombra -


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LES FÊNETRES SE OUVRAIENT


les fênetres s’ouvraient sur une herbe de rêve
enchevêtrées parmi les courses de l’eau
au feu des briques sauvages
trempaient dans le vin
les épais triomphes des couchants morcelés
bientôt la douleur ne sera plus vivante
et la dérnière lueur fauchera et son trouble
et la dure amitié qu’un ressort tendu
liait à son ombre – je n´était que son ombre -


Tristan Tzara

domingo, outubro 22, 2006



A Rosa Secreta
W. B. Yeats


Longínqua, tão secreta, inviolada Rosa,
Envolve-me na minha hora das horas; onde aqueles
Que te buscaram no Santo Sepulcro,
Ou no tonel de vinho, moram mais além dos tumultuosos e
Vencidos sonhos; e profundamente
Entre macilentas pálpebras, pesadas de tanto sono
Os homens nomearam a beleza. Tuas grandes folhas ocultas
As antigas barbas, os elmos de ouro e rubi
Dos coroados Reis Magos; e o rei cujos olhos
Viram as Mãos Crucificadas e a Cruz de sabugueiro elevar-se
Em druídicos vapores, extinguindo as tochas;
Até que o inútil clamor despertou e ele morreu; e aquele
Que encontrou Fand caminhando entre flamejante orvalho
Junto à sombria costa onde nunca soprava o vento,
E perdeu mundo e Emer por um beijo;
E aquele que os deuses levou para fora dos seus domínios
E durante cem rubras alvoradas se entregou ao festim e chorou
Os túmulos dos seus mortos;
E o rei sonhador e altivo que mágoa e coroa arremessou,
Convocando bobo e bardo,
Em profundos bosques habitava com os errantes filhos do vinho;
E aquele que vendeu campos, casa e bens,
E durante inumeráveis anos por terra e mar procurou,
Encontrou enfim, entre riso e lágrimas,
Essa mulher tão radiosa em sua beleza
Que à meia-noite os homens trabalhavam o cereal
Por um sorriso, um brevíssimo sorriso roubado. Eu também aguardo
Essa hora, a hora das tempestades do teu ódio, do teu amor.
Quando se soltarão do céu as estrelas
Como chispas de uma forja, quando morrerão?
É chegada a tua hora, teus grandes ventos acordam
Longínqua, secretíssima, inviolada Rosa?


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THE SECRET ROSE


Far-off, most secret, and inviolate Rose,
Enfold me in my hour of hours; where those
Who sought thee in the Holy Sepulchre,
Or in the wine-vat, dwell beyond the stir
And tumult of defeated dreams; and deep
Among pale eyelids, heavy with the sleep
Men have named beauty. Thy great leaves enfold
The ancient beards, the helms of ruby and gold
Of the crowned Magi; and the king whose eyes
Saw the pierced Hands and Rood of elder rise
In Druid vapour and make the torches dim;
Till vain frenzy awoke and he died; and him
Who met Fand walking among flaming dew
By a grey shore where the wind never blew,
And lost the world and Emer for a kiss;
And him who drove the gods out of their liss,
And till a hundred moms had flowered red
Feasted, and wept the barrows of his dead;
And the proud dreaming king who flung the crown
And sorrow away, and calling bard and clown
Dwelt among wine-stained wanderers in deep woods:
And him who sold tillage, and house, and goods,
And sought through lands and islands numberless years,
Until he found, with laughter and with tears,
A woman of so shining loveliness
That men threshed corn at midnight by a tress,
A little stolen tress. I, too, await
The hour of thy great wind of love and hate.
When shall the stars be blown about the sky,
Like the sparks blown out of a smithy, and die?
Surely thine hour has come, thy great wind blows,
Far-off, most secret, and inviolate Rose?

William B. Yeats

quarta-feira, outubro 18, 2006


Little Queen Of Spades
by Robert Johnson


She is a little queen of spades
And the men will not let her be.
Said she is a little queen of spades
And the men will not let her be.
Everytime she make a spread,
Oh fair brown, cold chills run all over me.


Gonna get me a gambling woman
If it's the last thing that I do.
Gonna get me a gambling woman
If it's the last thing that I do.
A man don't need a woman,
Oh fair brown, that he got to give all of his money to.


Everybody said you got a mojo,
'Cause baby, you've been using that stuff.
Everybody said you got a mojo
Baby, you've been using that stuff.
Got a way trimming down,
Oh fair brown, and I mean it's most too tough.


Little girl, since I am the king,
Baby, and you is the queen,
Little girl, since I am the king,
Baby, and you is the queen,
Let us put our heads together,
Oh fair brown, and we can make our money green.


p.s.: a música é magnificamente interpretada por Eric Clapton em "Me and Mr. Johnson". E a letra serve de mote ao meu último post sobre a Rainha de Espadas em Zoe Tarot.

segunda-feira, outubro 16, 2006

Ele oferece uns versos à sua amada



Prende os teus cabelos num alfinete de ouro,
E prende cada trança vagabunda;
Pedi ao meu coração para fazer estes pobres versos;
Neles trabalhou, dia após dia,
Edificando de antigas batalhas
Uma dolente formusura.

Basta levantares a tua mão nacarada
E prenderes os teus cabelos longos e suspirares,
para que o coração dos homens arda e palpite;
E a espuma como uma vela sobre a areia opaca,
E as estrelas que trepam do céu de orvalho,
Só vivam para iluminar os teus pés que passam.


W. B. Yeats

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Ele oferece a sua Amada alguns Versos


Com um alfinete de ouro prende teu cabelo,
E amarra juntas tuas tranças soltas;
Instei meu coração a erigir uns pobres versos:
Dia após dia, neles trabalhou com desvelo,
Erigindo com sofrida graça suas voltas
Inspirado nas batalhas de idos sucessos.

Basta que estendas pálida a nacarada mão,
E suspires e longo amarres o cabelo teu;
E o coração dos homens irá abrasar e bater à vez;
E candelabros de espuma na areia do chão,
E estrelas ascendendo no orvalhante céu,
Vivem só p’ra iluminar a passagem de teus pés.


tradução de José M., da cidade do Porto

domingo, outubro 15, 2006

JUÍZO FINAL

Bye, Malocas, Bye




Testamento de um recém-nascido


o livro já está acabando
e acabo de fazer o primeiro verso
ainda não me acostumei
a escrever pelo avesso

nem mais me lembro quando
comecei a brincar com o texto
só sei que sempre sonhei
que ele tivesse este jeito

de imagem, música, cinema
todos ponteiros ajustados
e levantando a bola pra poesia
brindar à vida no bar dos bardos

dedico este blog-livro aos que saíram de cena
antes da concretização dos fatos
mas não posso disfarçar a alegria
de estar bem vivo para rir dos ultimatos


Sérgio Viralobos

quinta-feira, outubro 12, 2006





"Descobri que precisava travar uma batalha com um determinado fantasma. E o fantasma era uma mulher, e quando cheguei a conhecê-la melhor, passei a chamá-la pelo nome da heroína de um famoso poema, "o anjo na casa" ... Ela era intensamente simpática. Maravilhosamente encantadora. Totalmente abnegada. Ela se distinguia nas difíceis tarefas da vida em família. Se havia galinha, ela ficava com o pé, se havia uma corrente de ar, sentava-se bem ali. Em suma, sua constituição era tal, que ela nunca tinha um pensamento ou desejos próprios, preferindo antes apoiar os pensamentos e desejos dos outros. Acima de tudo, ela era, é desnecessário dizer, pura... E quando me punha a escrever, deparava-me com ela logo nas minhas primeiras palavras. A sombra de suas asas espalhava-se sobre a minha página; eu ouvia o farfalhar da sua saia no quarto ... Ela se aproximava furtivamente pelas minhas costas e sussurrava ... Seja simpática; seja delicada; faça elogios; engane; lance mão de todas as artes e ardis do seu sexo. Nunca permita que alguém pense que você tem um pensamento próprio. Sobretudo, seja pura. E agia como se estivesse guiando a minha caneta. Relato agora a única ação que me levou ter um apreço por mim mesma ... Voltei-me para ela e a agarrei pela garganta. Apertei com toda minha força, até matá-la. Minha defesa, caso fosse levada a um tribunal, seria a de que agi em defesa própria. Se eu não a matasse, ela me mataria.”

Virgínia Woolf

quarta-feira, outubro 04, 2006


DOBRADA À MODA DO PORTO


Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.
Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes.
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.


Álvaro de Campos

terça-feira, outubro 03, 2006


AFASTADO


longe muito longe
além da névoa de Júpiter
foi o olhar mais demorado
que tivemos do amor

parecia que você estava lá
e eu na terra
não conseguia ouvi-lo
chorando de dor

então como um fantasma
você veio sob o sol poente
em casa outra vez
na minha porta

e estendeu a mão
do gelo onde esteve
no meu pulso enquanto fingia
entrar

mas o que entrou
foi um sopro de demônios
que gelou o amor
e esvaziou a casa

sentamos como cadeiras
em um ar que não perdoa
o que será dito ou não dito
de como ou onde



Edwin George Morgan
Tradução de Virna Teixeira

domingo, outubro 01, 2006




AMANTES



uma flor
_______não longe da noite
_______meu corpo mudo
___se abre
à delicada urgência do orvalho



Alejandra Pizarnik
Tradução de Virna Teixeira



Labirinto, a vida, labirinto, a morte
Labirinto sem fim, diz o Mestre de Ho.

Tudo afunda, nada libera
O suicida renasce para um novo sofrimento.

A prisão termina em uma prisão
O corredor termina em outro corredor:

Aquele que crê desenrolar o rolo de sua vida
Não desenrola nada em absoluto.

Nada desemboca em nenhuma parte
Os séculos vivem também sob a terra, diz o Mestre de Ho.


Henri Michaux
Tradução de Daniela Osvald Ramos

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Labyrinthe, la vie, labyrinthe, la mort
Labyrinthe sans fin, dit le Maître de Ho.
Tout enfonce, rien ne libère.
Le suicide renaît à une nouvelle souffrance.

La prison ouvre sur une prison
Le couloir ouvre un autre couloir:

Celui qui croit dérouler le rouleau de sa vie
No déroule rien du tout.

Rien ne débouche nulle part
Les siècles aussi vivent sous terre, dit le Maître de Ho.


Henri Michaux